PARTE I - Capítulo I - Liberdade condicional

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Em meados de outubro de 2012, com os meus recém completados dezoito anos, após nove meses e algumas cicatrizes, finalmente voltei para casa. Meu quarto está limpo e organizado, minha mãe deve ter limpado pouco antes de me buscar na clínica. O cheiro de desinfetante e água sanitária exala pelo local sensibilizando as minhas narinas com um certo ardor. A janela de madeira no tom de carvalho está aberta com suas folhas voltadas para fora, e o vidro perfeitamente transparente está levantado, fazendo com que o vento frio da manhã invada o ambiente, tremulando as cortinas de voil azul marinho.

Repousei a mala ao lado da cama e deitei-me, permanecendo por horas a fio na mesma posição, encarando taciturnamente a janela, ainda sob o efeito inebriante do tranquilizante correndo em minhas veias. Em uma tentativa de suprimir as lembranças tenebrosas que rondavam minha mente, mordi os lábios com força, sentindo o gosto férreo do sangue em uma tentativa fortuita de focar na dor e não deixar que minha mente divagasse ao passado.

Desviei meus olhos da janela, sentindo a demasiada claridade ofuscá-los. Encarei o teto em branco recém pintado, tentando de algum modo traçar as linhas emolduradas do gesso com o meu dedo indicador em uma espécie de pintura em tela imaginária, algo que eu tenho costume de fazer desde criança quando me sinto deslocada.

Meu quarto não se parece mais com o refúgio de uma adolescente, está mais para um quarto de hóspedes, as paredes estão completamente brancas, sem pôsteres ou marcas da minha existência. A colcha azul turquesa está impecavelmente limpa sobre a cama exalando um odor forte de água de rosas.

Não há nada que realmente me pertença nesse ambiente, minha mãe se livrou de tudo que um dia me pertenceu, com todos seus esforços de desinfetar todas as lembranças de meus erros, como germes.

Alisei meu dedo indicador introspectiva. – Helena tudo o que me resta agora é o seu anel, e o vazio da sua ausência – sussurrei observando a pequena cianita no centro do anel prateado.

Por ordens médicas meus pais gastaram uma pequena fortuna em remédios que me anestesiavam de qualquer sentimento ou culpa, deixando-me em um estado de inércia. Me obrigaram a continuar o tratamento, seja ele o tempo que fosse necessário, caso contrário eu era um perigo para mim mesma e para os outros ao meu redor. Deste modo eu voltaria a ser trancafiada na clínica e eles jogariam a chave fora. Claro que não me foram transmitidas exatamente essas palavras, mas em resumo é isso, de maneira menos sutil e técnica, fugindo dos jargões da medicina.

Eu observava aquele quarto de aparência acolhedora, com um vaso de miosótis sobre a escrivaninha, onde outrora repousava o meu computador. Em uma medida protetiva minha mãe confiscou por tempo indeterminado o meu celular e computador. Talvez temendo que eu tentasse me comunicar com algum sobrevivente do meu pequeno círculo de amigos. O irônico é que sempre detestei a tecnologia, esse é um dos motivos que fazia com que eu me sentisse deslocada em meio as pessoas da minha idade, com suas redes sociais abrindo suas vidas a estranhos, cativando-os como peças em exposição em uma grande vitrine humana.

Ouvi passos arrastados se aproximando da entrada do quarto e logo deduzi que aquele ruído em especial pertencia ao meu irmão Israel, pelo seu jeito único de andar arrastando os pés. Ele tem dezessete anos, com seus majestosos um metro e oitenta, pele clara com um leve bronzeado, porte atlético, olhos verdes e cabelos castanhos ondulados. É o "mestre da apatia", não se preocupa com nada além de si mesmo e as garotas que ele se envolve e descarta como bitucas de cigarro na sarjeta.

Senti sua presença me encarando próximo ao batente da porta, mas ele não arriscou entrar e ter que interagir com a irmã demente, ou mentalmente instável, a maneira floreada como se referia a mim, quando eu estava em um mesmo cômodo que ele, enquanto agia como se eu fosse uma peça de museu disponível para observação. Continuei imóvel olhando fixamente para o teto, contando quantos segundos ele demoraria para desistir daquela tentativa de interação.

Anjos de pedra - Volume IOnde histórias criam vida. Descubra agora