Sempre fui amaldiçoada com uma timidez indescritível, em uma morada corpórea delgada, miúda, olhos azuis e cabelos da cor de palha de milho seca ao sol. Estava no início do ano 2010 quando minha vida virou de cabeça para baixo, não que antes disso eu era considerada uma pessoa absolutamente normal. Porém esse ano em especial foi como um salto de trampolim para uma piscina transbordando loucura.
Nesse ano em questão, com os meus dezesseis desajeitados anos, conheci um garoto, na escola de música no centro da cidade, onde eu fazia aula de piano. Um tipo esbelto e charmoso com uma palidez quase mórbida, realçada por sua cascata de cabelos ondulados acobreados como o fogo e profundos olhos cor de âmbar.
Nos esbarramos subindo as escadas no meu primeiro dia de aula. Ele me apresentou um sorriso amigável exibindo sua arcada superior e continuou seu caminho até a sala de violoncelo, senti um leve calor subir-me a face e entrei na sala de piano. Depois de alguns olhares trocados e sorrisos desconcertados pelos corredores do edifício, ao longo de alguns meses, nunca trocamos uma palavra sequer.
Finalmente nos encontramos em um grande ensaio da orquestra, cuja qual eu orgulhosamente acabara de ser escalada. Nela reuniam-se todas as turmas de música do local em um cômodo apertado, com o sisudo mestre regente e ensaiávamos por duas horas, com intervalos de quinze minutos a cada uma hora. No final de dezembro daquele ano haveria uma apresentação no velho teatro da cidade, por este motivo estávamos ensaiando exaustivamente toda semana.
Nos curtos períodos de intervalo eu aproveitava para sair do edifício e dar uma volta na praça mais próxima. Respirando o ar puro dos jardins que me cercavam, me desvencilhando temporariamente das misturas de cheiros inebriantes de desodorante vencido, suor e chulé daquele cômodo sem janelas que ficava embaixo da escada.
Sempre fui muito ligada à natureza, às vezes passava horas sentada observando uma flor na tentativa de reproduzir sua beleza em meu caderno de desenhos. Em uma certa tarde no intervalo da orquestra, estava sentada na grama, trajando um jeans azul desbotado e uma camiseta do Joy Division. Em meu bloco de desenhos eu tentava reproduzir a beleza magnífica de uma borboleta em repouso na crosta próxima ao tronco de uma grande árvore de jacarandá saturada de encantadoras flores violetas.
Traçava em meu bloquinho as linhas negras de contorno da borboleta, esfumaçando as bordas com meu polegar direito. Suas asas eram de um amarelo alaranjado com alguns traços negros, seu corpo inteiramente negro, com algumas bolinhas brancas minúsculas salpicadas em sua cabecinha de alfinete.
Meus pais julgavam os meus desenhos como perda de tempo. Principalmente meu pai com seus típicos comentários "É necessário pensar em coisas que rendem dinheiro! Você deveria estar fazendo aulas de cálculo, para melhorar suas notas em matemática! Quando terminar o colégio vai ingressar em uma faculdade de ciências contábeis e assumir um cargo no escritório da família!"
Mamãe e papai tinham um relacionamento um pouco conturbado, com circunstâncias misteriosas que eu desconhecia. Eu não conseguia digerir, como minha mãe aceitava ser reprimida e perder suas asas, como uma cotovia ficando presa dentro de uma pequena gaiola enferrujada daquele jeito? Seus olhinhos úmidos e brilhantes gritavam em silêncio, mas o que eu poderia fazer a respeito se ela não clamava por ajuda?
"Não era da minha conta, afinal" era o que tia Helena me dizia com um olhar penetrante, tentando me transmitir seu senso de conformidade "Escolhas querida, todos nós temos escolhas e sua mãe escolheu ficar em um relacionamento abusivo". Eu pensava às vezes quando via os ombros encolhidos de minha mãe e seu rosto triste se realmente ela tinha escolhido viver naquela situação ou se não tinha outra escolha.
Tia Helena ganhava sua vida vendendo seus quadros e artesanato, sempre que podia me dava alguns conselhos sobre desenho e me estimulava a nunca desistir dos meus sonhos. Algumas vezes a medida do possível ela me dava dinheiro para eu fazer uma ou outra aula escondida, em outras ela me presenteava com materiais de pintura e desenho. Sempre com um sorriso caloroso ela me dava um abraço apertado e sussurrava em meu ouvido "Esse é o nosso segredinho".
VOCÊ ESTÁ LENDO
Anjos de pedra - Volume I
Fantasy***Livro registrado na Biblioteca Nacional e disponível até o fim do mês na Amazon*** Seus pesadelos enfim se tornaram realidade quando Arianna Deinne conhece Gael, um garoto misterioso que tocava violoncelo na orquestra da escola Felippe Del Gia...