Capítulo 1

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Ela surgiu das ondas, esguia como uma nereida, com os cabelos revoltos, o corpo nu brilhando à luz da madrugada.
— Pelas barbas de Zeus!
A exclamação de Serkan flutuou na névoa. Ele se deteve na metade da trilha que descia a encosta e debruçou-se na verdadeira parede de rocha, os olhos fixos na moça lá embaixo. Ao seu lado,o oficial abaixou-se por instinto e empunhou a espada.
— O que foi capitão? O que há lá embaixo?
O sussurro mal se ouviu, abafado pelo troar das ondas quebrando no costão. Com um movimento de cabeça, Serkan indicou a silhueta imersa na água até os joelhos. O tenente voltou a respirar com calma,aliviado.
— É só uma mulher...
— Não, Ergin, não é só uma mulher. Os deuses enviaram uma fada das águas para abençoar nossa missão.
Movida pelo vento, a névoa esgarçou-se, permitindo que os dois homens enxergassem melhor.
— Ela me parece bastante humana... — comentou o oficial.
Os olhos de Serkan avaliaram a moça por um bom momento antes de examinarem as encostas, a procura de companheiros que ela poderia ter. Então, relaxando a mão que envolvia o punho da espada, apoiou o pé numa pedra. Seu instinto, apurado por anos no comando de batalhas, dizia que estavam apenas eles três ali. E tinham algum tempo para escapar, antes que o sol se erguesse. Podia aproveitar por mais um momento aquela visão que parecia uma dádiva dos deuses.
E era mesmo uma dádiva, decidiu com masculina aprovação quando a jovem mulher ergueu os braços para ajeitar os cabelos. Ela imobilizou-se, as mãos na cabeça, os olhos fixos no horizonte onde a luminosidade do sol se anunciava em meio a neblina.
Ela era a mais bela mulher que já tinha visto, isso Serkan podia ver mesmo com a pouca luz. O corpo era esbelto, diferente das arredondadas silhuetas femininas que enfeitavam sua casa. O perfil mostrava um nariz curto e o queixo revelava firmeza incomum nas mulheres. As gotas da água fria do amanhecer brilhavam como pérolas irisadas na pele acetinada. Seios pequenos e firmes apontavam para cima, suaves oferendas à manhã. Ela parecia pertencer ao mar, que quebrava em suas pernas, aceitando as caricias dele como as de um amante atencioso.
Serkan percebeu que começava a sentir desejo. Para um homem acostumado a pensar no que o mar oferecia como despojos de guerra, aquele prêmio inesperado ficava mais valioso a cada momento. Apesar disso, tinha estranha relutância em perturbar a beleza da cena e a aura mística que envolvia a mulher lá em baixo. Um sorriso surgiu-lhe nos lábios enquanto erguia o corpo. Não era a primeira vez que o poeta em sua alma combatia o guerreiro que trazia no sangue.
— Capitão — sussurrou o tenente, bem atrás dele — temos de chegar no barco antes do sol erguer-se completamente, se quisermos aproveitar os ventos da manhã. Precisam...
Ergin parou de falar quando a mulher baixou os braços. Com movimentos lentos ela torceu o cabelo, tirando a água, então, seguiu para a praia. As mãos esbarravam no mar, deixando uma espuma iridescente onde tocavam.
Serkan colocou-se por trás de uma saliência na encosta, para não ser visto. Lamentava que o breve interlúdio estivesse terminando. Por momentos, enquanto a cor do oceano mudava de negra para cinza esverdeado e a mulher estimulava seus sentidos, confinara a urgência da missão a um ponto afastado da mente. A nereida lá embaixo o fizera esquecer por completo as pressões da guerra. Mas a realidade voltou a ocupar seu lugar e Serkan assentiu para Ergin.
— Vamos para o barco assim que ela sair da praia.
Ficaram observando, enquanto a moça ia até uma pequena pilha de roupas. Com imensa graça, colocou o tecido de linho sobre os ombros e ajustou-o a cintura com uma corda, transformando-o em elegante túnica. O tecido grudou ás costas e nádegas molhadas quando ela se curvou para pegar algo envolto num pano e um para de sandálias.
O desejo de Serkan sumiu de imediato ao vê-la voltar-se não para a trilha que levava à aldeia, adormecida à distância, mas sim diretamente para eles.
— O que em nome dos deuses, ela vai fazer? — murmurou Ergin.
Franzindo a testa, o capitão fez sinal para ele ficar quieto. A jovem caminhou entre as escolhos, cada passo levando-a para mais perto da embarcação que tinham deixado escondido atrás das pedras.
Bem a frente deles, onde estava o barco, havia um promontório que entrava pelo mar e nas pedras subiam degraus até um pequeno altar de mármore , que nenhum dos dois havia notado ao aportar, durante a noite. Preocupado, Serkan indicou o altar. Ergin percebeu o que significava.  Aquela jovem mulher provavelmente era uma sacerdotisa, ou ajudante, e viera fazer as oferendas matutinas ao deus ou deusa que protegia aquele trecho de costa. Já se purificara no mar e agora subiria até o altar. Infelizmente, esse trajeto a faria passar pelo barco deles.
Serkan sinalizou para Ergin permitir que ela passasse, então o seguisse encosta abaixo, num contorno que os levaria a alcança-la por trás. O tenente assentiu, a mão descendo para a bainha de couro que guardava a adaga.
Eda ergueu uma das mãos para tirar o cabelo molhado dos olhos; com a outra, segurava as sandálias e o embrulho de pano,onde havia pequenas tortas recém-assadas. Mantinha os olhos fixos no solo irregular, mas apesar do cuidado, um pé escorregou e bateu contra uma pedra.
— Que Hera...
Conteve o resto da exclamação e sentou-se, segurando o pé,massageando os dedos machucados. A dor diminuiu, mas ela reparou que tinha apertado o embrulho contra o peito. Esquecendo da dor,largou as sandálias e desdobrou o pano muito alvo. Como temia, as pequenas tortas estavam destruídas. 
Oh, não! Não essa manhã, entre todas as manhãs! Não quando queria desesperadamente levar uma oferenda pura para o ritual. Não, quando pretendia fazer um último pedido de força a Ártemis, a deusa virgem que dava atenção especial as questões femininas. 
Eda olhou para as tortas despedaçadas, rezando para que não fosse um mau presságio quanto a noite desse dia. Mas disse a si mesma que estava errada em temer casar-se com o guerreiro que seu tio escolhera para ela. Ficara viúva há muito tempo, fazia quase cinco anos. Alguém com sua riqueza e posição não tinha o direito de permanecer sozinha. O dever de uma mulher... Não, o único propósito na vida de uma mulher era casar-se, ter e criar filhos fortes. Só porque o homem escolhido para dividir sua cama a fazia sentir arrepios de repulsa não era motivo par fugir das obrigações.
Engolindo em seco, ela combateu o desejo de jogar o embrulho nas águas do mar. Por mais que praguejasse contra o tio por ter-lhe escolhido tal marido, não ofenderia a deusa com um ato desrespeitoso. Não agora, com a guerra entre Esparta e Atenas. Era filha de Esparta e não devia correr o risco de atrair a fúria da deusa contra si mesma ou contra sua terra. Suspirou, sabendo que o que precisava fazer era completar o ritual. Então, voltaria para encontrar os soldados que aguardavam para leva-la de volta á cidade e para o homem que a possuiria.
Combatendo a relutância que ameaçava dominar seu coração, Eda forçou-se a se levantar e pegar as sandálias. Ao faze-lo, reparou numa cor diferente entre as pedras. Hesitou um instante, depois foi até lá averiguar. Havia um barco escondido. Era grande demais para ser um bote de pesca, e de qualquer forma, nenhum pescador local se atreveria a deixar um barco na praia sagrada. Devia fazer parte de uma embarcação maior, concluiu, talvez uma trirreme. Não reconhecia o nome gravado na proa alta do barco,nem o padrão de vermelho e azul do casco. Se o barco pertencia a uma nau de combate, com certeza não era de Esparta. Sentiu profundo sobressalto ao concluir que havia um navio desconhecido nas águas próximas.
E o sobressalto se transformou em alarme quando uma sombra passou por ela e parou sobre a embarcação. Antes que conseguisse se virar para ver quem era,um braço de ferro envolveu-lhe a cintura e puxou-a . A palma de uma grande mão, igualmente forte cobriu-lhe a boca.
— Se ficar quieta, mulher, não vamos...
Eda reconheceu o sotaque do homem assim que ele começou a falar. Atenas! Um ateniense ali, a menos de quinze quilômetros dos portões de Esparta! Muito perto do porto que abrigava a esquadra de Esparta! Sem pensar no que fazia, ela reagiu. Usando a força que adquirira em anos de treinamento vigoroso, enfiou o cotovelo na barriga dele.
— Auff! — gemeu o homem.
O braço que a envolvia afrouxou, mas não chegou a solta-la. Agindo com rapidez, Eda passou um pé por trás de uma das pernas musculosas e puxou, fazendo-o cair. Ainda segura por ele, Eda foi junto, mas usou a situação para soltar todo o peso na barriga dele, que soltou todo o ar com força.
Livrando-se, ela levantou-se e só então olhou para o inimigo, preparando-se para chuta-lo. No décimo de segundo antes de desferir o chute, avaliou o corpo caído a sua frente. Era o corpo de um atleta, alto, esguio e forte, com músculos poderosos cobertos por pele bronzeada e uma suave penugem dourada. Um adversário admirável,pensou com relutância enquanto fazia o pé avançar.
Mas no instante do impacto a mão dele ergue-se, pegou-lhe o tornozelo e puxou, fazendo-a perder o equilíbrio. Mais uma vez Eda caiu sobre a barriga dele mais uma vez fez uso do peso. Só que então ele estava preparado: os músculos se contraíram e ela chocou-se contra o ventre rijo com uma força que a fez perder a respiração.
Ficou sobre o homem,os olhos arregalados de surpresa. Não conseguia se lembrar da ultima vez em que fora derrubada por um homem.
— Pare, mulher! 
Ignorando o comando, Eda começou a se debater e chutar. Estava numa posição ruim, com uma das pernas segura por ele, e não adiantou, então resolveu atacar com as unhas. No último momento o homem moveu o braço para se proteger e antes que ela o atingisse segurou-lhe o pulso. Furiosa, viu-se presa em dois pontos.
— Pare! - ordenou ele.
— Não, enquanto não me soltar!
— Se continuar se mexendo assim, não é bem isso que vai acontecer!
As palavras pronunciadas entre dentes não fizeram sentido para Eda, até que parou para respirar fundo e notou o volume encostado em suas nádegas. Aí, entendeu o que ele queria dizer. Fitou-lhe o rosto imediatamente, e para sua surpresa, viu um sorriso dançando nos olhos verdes que brilhavam entre os cílios dourados. Ele estava rindo! O maldito estava rindo para ela! Ou estaria rindo dela?
— Porco ateniense — esbravejou, o impulso de lutar voltando com força redobrada – Você não vai achar por muito tempo que é agradável se esfregar numa espartana!
Tateando o chão com a mão livre, Eda encontrou uma pedra de bom tamanho. Seu olhar, então, revelou triunfo e um sorriso de troça surgiu-lhe nos lábios. Ela nada poderia fazer, agora, com uma das mãos segurando-a pelo tornozelo e a outra pelo pulso, teria de solta-la para se defender.
— Prepare-se para encontrar seus ancestrais — disse ela, erguendo o braço.
— Não, Ergin! — exclamou o homem que a atacara e nesse momento ela ouviu um ruído atrás de si.
Foram as últimas palavras que Eda percebeu antes do mundo explodir em lascas de dor,e depois, sumir na escuridão.
Serkan rolou para um lado, segurando o corpo inerte nos braços. Com as bastas sobrancelhas franzidas, depositou-a com cuidado sobre uma pedra achatada e levou uma das mãos ao pescoço macio.
— Você não devia ter batido com tanta força! — censurou Serkan.
Sem se perturbar, Ergin avaliou a moça desmaiada:
— Vi que estava gostando da brincadeira, capitão, mas não tenho muita certeza de quem teria vencido...
Serkan verificou que o coração dela batia normalmente.
Respirando fundo, sentou-se sobre um calcanhar e sorriu para o ajudante.
— Eu também não tinha certeza, Ergin. Quase fui vencido, primeiro pelo cotovelo dela, depois pela pedra que ela pegou.
— Exato. E me imaginei diante do conselho, dizendo que uma serva espartana vencera um dos melhores capitães de mar de Atenas, num combate corpo-a-corpo. Eles iam adorar! Acho que uma história dessas os faria rastejar até Esparta, implorando para que a guerra não começasse.
Serkan sorriu, sem fazer mais comentários. Os dedos percorreram suavemente o pescoço da mulher antes de ele apoiar o braço no próprio joelho, pensando no que deveria fazer.
— Temos de mata-la, capitão — Ergin ajeitou na mão a adaga, da qual usara a empunhadura para bater na cabeça da jovem agressiva. — Não podemos deixa-la viva, capitão. Nossas ordens são claras. Temos de passar despercebidos, a todo custo. Ela percebeu que o senhor é um ateniense e vai dar o alarme.
— Nós não guerreamos com mulheres.
— Mas...
— Especialmente com mulheres como essa.
Ergin voltou a olhar a moça:
— O que há de tão especial nela? É muito magra. Não tem a maciez necessária par acomodar os ossos do homem que a montar.
— Ah, Ergin! Pensei que o tinha treinado melhor. Deve sempre olhar além do casco externo do barco, para ver a tripulação que o comanda...
Ignorando a careta de pouco caso do guerreiro, Serkan observou a mulher novamente. O cabelo castanho, ainda molhado, espalhava-se sobre a pedra, a cor escura fazendo-o lembrar do pelo escuro da pantera cuja pele vira decorando o chão da tenda de um príncipe persa. E ela lutava como uma pantera, os olhos castanhos brilhando de forma animal. Para uma mulher pequena, tinha uma força surpreendente.
Deteve o olhar em um trecho da pele cor de marfim do quadril, revelado pela túnica que escorregara. Permitiu-se um momento de prazer com o que via antes de voltar a pensar no problema. A razão dizia que Ergin estava certo, não podiam deixar uma testemunha. Não quando ainda tinham uma noite de trabalho antes de voltar ao barco a fim de retornar a Atenas. Também não fazia sentido leva-la com eles. Só iria complicar uma tarefa já bastante difícil.
Mas nesse instante ela emitiu um fraco gemido de dor, num som muito suave, diferente da voz vibrante de raiva que ouvira antes. Foi o bastante para Serkan decidir o que fazer. Não iria deixá-la ferida e abandonada naquele lugar ermo, nem atiraria seu corpo morto para os peixes.
— Vamos leva-la conosco.
— Ainda temos que trabalhar essa noite, capitão. Não podemos ter uma prisioneira.
— Ela vai conosco.
— Mas o que vamos fazer com ela quando nos voltarmos para a esquadra, amanhã? Não podemos leva-la a bordo do NIKE.
Com a paciência aprendida durante anos de lida com os cidadãos cheio de opiniões que tripulavam os barcos de Atenas, Serkan deu de ombros:
— Decido o que fazer quando chegar o momento.
— Uma mulher num barco atrai a ira dos deuses. Lembra-se das tempestades que quase afundaram quando o timoneiro pôs aquelas putas egípcias a bordo, duas viagens atrás?
— Sim e lembro também como a tripulação gostou da viagem antes das tempestades. Incluindo você — comentou Serkan, sorrindo para o companheiro, enquanto erguia o corpo desmaiado nos braços. — Vamos, Ergin, pare de protestar. Sabe muito bem que cortar a garganta de uma mulher indefesa vai enfurecer muito mais os deuses do que leva-la a bordo.
— Ela não me parece propriamente indefesa...— começou Ergin, mas resolveu calar-se.
Conhecia o capitão muito bem. Quando decidia, nada o fazia mudar de idéia. Até o momento as decisões dele tinham levado a retumbantes vitórias e ricas pilhagens para a tripulação, motivo suficiente para fazer os homens lutarem em disputa de um lugar numa de suas tripulações. Mesmo quando o sorteio lhe destinava um barco velho e com vazamentos, a tripulação sabia que Serkan, filho de Alptkin, compensaria com sua habilidade e ousadia o que a nau não tinha em velocidade. Ainda assim, uma mulher a bordo significava problemas. Ergin emitiu um pedido silencioso para que os deuses do mar os ajudassem.
— Ela é apenas uma mulher — disse Serkan — Ferida e desprotegida. É claro que nós vamos conseguir lidar com ela.

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