Capítulo 5

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Eda tinha certeza que estava pagando por todo e qualquer pecado que cometera durante a vida. Apesar de ainda estar viva, sentia que descia aos poucos para o escuro mundo subterrâneo.
— Precisa tomar um pouco de água ou vinho, senhora.
Ela gemeu e afastou a mão do tenente, que lhe oferecia um copo:
— Vá embora.
— Senhora Eda, escute-me! Há dois dias que não bebe sequer um gole de água! O capitão diz que deve repor o que seu corpo perdeu.
— Deixe-me morrer em paz, ateniense — murmurou ela.
Por entre os longos cílios viu o marinheiro sem coração fazer cara de pouco caso e tornar a agachar-se ao lado da cama em que estava largada, sem forças.
— Ninguém morre de enjoo — sentenciou ele — No máximo, perde-se a dignidade...
— Perdi mais que isso e você sabe muito bem. Meu estômago já se foi há muito tempo pela borda do barco, assim como minha vontade de viver. Deixe-me em paz.
— Depois que a senhora beber — teimou ele.
Suspirando, Eda fez a água descer pela garganta, então tornou a se deitar, rezando para que ela permanecesse no estômago. Nesse momento a nau desceu uma onda, fazendo-a gemer outra vez.
E pensar que quando o capitão a capturara na praia sagrada achara uma tortura as horas que passara no pequeno barco! O que sentira naqueles momentos mal chegava a se comparar com a náusea que a acometera desde que entrara naquela amaldiçoada embarcação. As longas trirremes que tinham deslizado com impressionante graça nas águas do porto de Limera eram, na verdade, pequenas porções do inferno. Não era de admirar que apenas atenienses sem cérebro e sádicos as usassem. Ninguém com um mínimo de juízo se sujeitaria a tanto sofrimento.
Para aumentar sua provação havia os odores, o calor e o incessante barulho. Os sons ecoavam dolorosamente em sua cabeça: remos de madeira rangendo contra os suportes, o tambor marcando o ritmo das remadas, ondas batendo contra o casco, o contra meste gritando a contagem numa voz capaz de ser ouvida bem além do barco e o flautista acompanhando o compasso em tons agudos. A cada movimento dos remos Eda tinha impressão que seu crânio ia explodir. Mas até que poderia suportar o barulho se não fosse o cheiro sufocante.
O odor do suor dos duzentos homens no barco misturava-se com o cheiro da gordura que usavam para engraxar os couros. Sem lubrificação os tirantes estourariam sob a tensão causada pelos imensos remos. Pelo menos, fora o que o tenente dissera, exasperado, quando ela reclamara. Mesmo ali, no castelo da popa, não havia como escapar daquele odor. Eda voltou o rosto para o vento e tentou respirar o mais levemente possível.
Eda não se impressionava com a visão das pás dos remos erguendo-se em sincronia da água,uma depois da outra, chegando ao nível do horizonte e descendo de novo em perfeita ordem. Também não via beleza alguma nos corpos suados dos homens que remavam sem parar, num ritmo tão gracioso quanto o de uma dança. Fechou os olhos e rezou para o crepúsculo chegar logo; então, os barcos se aproximariam de costa e parariam, para que todos desembarcassem, comessem e dormissem. Por alguma horas, ao menos, sofreria muito menos.
De fato, o enjoo começara a diminuir no meio da tarde. Se era por causa do mar mais calmo ou porque não tinha mais o que vomitar, ela não sabia dizer. Lutou para se sentar, erguendo o rosto para a brisa que brincou com seus cabelos e agradeceu ao estômago por ficar quietinho pela primeira vez em dias. Aos poucos, como um cachorro tímido aprendendo a viver nas ruas da cidade, sua força foi retornando.
— Então, de volta ao mundo dos vivos?
Eda olhou para trás, por cima do ombro, e viu as pernas fortes, com pelos vermelhos, bem separadas para firmar o corpo ao balanço do mar. Ergueu os olhos, passando pelas manchas roxas e cortes que marcavam o corpo e os braços dele, e teve que conter uma exclamação involuntária ao ver o estado do rosto. Apesar de quase não haver mais nenhum inchaço, o nariz estava sem cor e fora do lugar. Para sua tristeza, o perfeito perfil agora distorcido tinha aparência mais humana e mais atraente, se é que isso era possível.
— Seu rosto perdeu um pouco do tom esverdeado — disse o capitão,abaixando-se ao lado dela.
— O seu não.
A risada dele começou com o som que ela já conhecia, mas terminou com um gemido de dor.
— Seu tio tem punhos muito pesados!
— Tem, sim. — concordou ela olhando para o mar.
Ele segurou-lhe o queixo, de leve, com as pontas dos dedos e a fez encará-lo.
— Você salvou minha vida ao desviar o golpe dele na praça — Comentou sério — Por que fez isso?
— Se soubesse que você ia retribuir minha ajuda trazendo-me como refém, eu não teria feito.
— Mas fez. Por que, pequena Tétis...senhora Eda?
Irritada, ela afastou a mão dele do rosto.
— Eu não sei! Tive pena, acho. Não gosto de ver maltratar homens subjugados. Até mesmo um ateniense sem valor merece ter morte honrada.
Enquanto falava, Eda evitou o olhara firme dele. Na verdade, sempre que tivera alguma força para pensar,nos últimos dois dias, ela se fizera essa pergunta. Por que, por tudo que era sagrado? Por que se interpusera entre aquele homem e sua morte? Por que o defendera, aumentado assim a própria culpa?
— Não pense que não lamento meu gesto impensado. — Voltou a falar, perturbada pelo silêncio dele — Aquele momento de fraqueza me condenou ao inferno desta desgraça flutuante e a companhia de gente como eles!
Seguindo-lhe o olhar, Serkan viu que ele e Eda eram objeto de intensa curiosidade. Um grupo de marinheiros estava no horário de descanso entre tarefas: espalhados pelo convés, conversavam. Mais de um par de ávidos olhos masculinos fixavam-se na mulher ao lado dele. Pela abertura entre os conveses, os remadores também lançavam olhares demorados para cima, a cada vez que completavam um movimento para a frente. Mesmo os arqueiros citianos, colocados logo abaixo da curvatura da proa, pareciam mais interessados na conversa do capitão com a prisioneira do que em vigiar a aproximação de barcos inimigos.
Serkan distribuiu um casual olhar de advertência para a tripulação e todos trataram de mudar rapidamente de interesse. Mas mesmo assim alguns ainda dirigiam olhares disfarçados na direção da jovem espartana de cabelos como seda e rosto lindo, que ia aos poucos recuperando a sadia coloração de um marfim-dourado.
Tratando de afastar o vergonhoso desejo de que a dama continuasse com o doentio tom esverdeado e fizesse uso de hora em hora do vaso de cerâmica que Ergin colocara ao lado da cama, Serkan se ergueu. O instinto lhe dizia que aquela noite na costa, a última antes de chegarem a Atenas seria muito longa.
Ao pôr-do-sol desembarcaram numa ilha que era ponto costumeiro de parada antes do trecho final até o golfo de Salonica.
Carregando os longos navios nos ombros, os homens os levaram para a praia. Pouco depois pequenas fogueiras ardiam ao longo da areia para o preparo de comida. Depois de fazer Eda acomodar-se junto da fogueira onde se achavam seus oficiais, Serkan foi reunir-se aos demais capitães.
Quando retornava para seu acampamento, horas mais tarde, ele sentiu que os cabelos da nuca se eriçavam. O ambiente entre a tripulação chegara a um ponto que reconheceu de imediato. A noite parecia imersa em tensão contida, como se tempestades de verão estivessem se preparando logo além do horizonte e raios se pusessem a rasgar o céu a qualquer momento.
Conhecia cada um dos seu homens, desde o grisalho marinheiro do leme até o garoto magro, de olhos estatelados, cuja tarefa era levar água e baldes de gordura aos remadores. Sabia que era difícil controlar o grupo. Ao contrário das outras cidades, que usavam estrangeiros nos remos, Atenas fazia tripulações apenas com atenienses. Era uma honra ser escolhido para fazer parte da frota para remar ou velejar sob a bandeira da cidade até os extremos do império. Mas esse mesmo espírito orgulhoso, que fazia os duzentos homens remarem exatamente ao mesmo tempo, também os tornava donos de si mesmos, exigentes e vorazes quando se tratava de reclamar os prêmios que retiravam dos mares com habilidade e ousadia.
Notou que olhavam fixamente a silhueta esguia de Eda, delineada pela luz das chamas; ouvira os comentários sobre a mulher espartana nas conversas noturnas da tripulação. Sabia que apenas o enjoo a protegera até então. Isso e o fato de ele ter tido o cuidado de cobri-la com sua capa todas as noites e dormir ao lado dela.
Juntou-se ao grupo de oficiais ao redor da pequena fogueira, onde ela também estava. Seu rosto recuperara o habitual tom de marfim e, pelo jeito, ela recuperara também a voz. Encostou-se numa rocha, estendeu os pés para o fogo e fez força para não sorrir ao ouvir a acalorada discussão.
— Estou dizendo, os deuses não fizeram o homem para andar pelas águas! — afirmava ela — Não é natural. Eles nos deram pés para caminhar e correr na terra. Se quisessem que fôssemos da água teriam nos dado barbatanas e guelras!
O comandante dos hoplitas soltou uma exclamação de escárnio. Serkan podia imaginar a reação que ele estava tendo diante daquela mulher audaciosa, que dizia o que pensava e ousava desafiar o direito deles de dominara os mares.
— Também nos deram mãos para fazer grandes templos, estátuas da argila, mármore e madeira — respondeu lentamente o comandante, como que relutando a entrar em debate com uma simples mulher — A trirreme é tanto uma obra de arte quanto qualquer templo. Seria um sacrilégio não usar esse presente dos deuses tão belo e com tamanho poder de ataque.
Eda ajeitou os cabelos com as mãos, num gesto impaciente, e olhou o marinheiro com evidente desconfiança.
— Todos os atenienses brincam assim com as palavras? — perguntou, provocadora — Os guerreiros da minha cidade acham que não é adequado apoiar os opiniões em sofismas...
— E nós achamos que não é adequado"não" usá-los — disse rispidamente outro oficial — O ideal ateniense é educar tanto a mente quanto o corpo.
Serkan escutava com metade da atenção. Apesar da postura relaxada e o modo descontraído que segurava o chifre com vinho, tinha aguda consciência da atenção que Eda despertava. Mesmo com os cabelos sujos e despenteados, dos dias de mal-estar que passara e da túnica em condições não muito melhores, era uma visão que atraía os homens. E muito.
Estava sentada no chão, com as pernas cruzadas, a túnica delineando os quadris de curvas sutis. De vez em quando, ao fazer alguma de suas ardorosas afirmativas, erguia um dos braços delicados para enfatizar o ponto mais importante expondo o contorno elegante do corpo esguio e quando se inclinava para frente, a luz do fogo delineava claramente os seios pequenos e firmes através do linho fino. No entanto, ainda mais atraente do que suas formas era o desafio que tinha nos olhos castanhos, grandes e luminosos como o mar de noite. Dividido entre o alivio por ver que Eda se recuperava, que não exibia mais o tom emaciado e sem vida, e o sincero desejo que isso não houvesse acontecido, Serkan olhava da animada mulher para os homens ao redor das outras fogueiras. Muitos olhos a fitavam e o capitão não gostava do que via neles.
Ergin ajoelhou-se ao lado de Serkan. Como que lendo os pensamentos do amigo, o tenente expressou suas preocupações em voz baixa:
— Eles querem vingar seus ferimentos e o modo como ela ameaçou nossa missão, capitão. Não conseguem entender por que você não a compartilha...
— Ela é uma refém, não um pedaço de carne assada — disse Serkan tomando um longo gole do chifre.
— Reféns não são mais do que prisioneiros entregues ao inimigo — contrapôs Ergin — É comum sofrerem abusos e indignidades. Eles querem dividir o que foi capturado — insistiu o tenente olhando para a jovem mulher perto do fogo. — Por Hércules, eu disse que ela ia criar problemas!
Serkan sorriu:
— Sim, você disse, Ergin, você disse. — concordou Serkan, enquanto observava os homens da tripulação, até que ficou olhando para um deles. Chamou com voz sonora: — Erdem!
— Sim, capitão!
Um homem grandalhão se pôs de pé. Entre os musculosos remadores, ele se destacava não só pelo tamanho, como também pela arrogância e pavio curto. Usando força bruta e punhos rápidos, ele subira do banco inferior dos remadores para liderar os mais experientes que moviam os remos superiores.
— Você será a escolta da senhora Eda. Acompanhe-a ao limite da praia para que ela cuide de suas necessidades sem ser perturbada.
— Sim, capitão.
Murmúrios baixos percorreram toda a tripulação.
— Serkan... — sussurrou Ergin, perplexo.
O capitão o fez calar-se com um movimento de mão.
— E vocês todos, diminuam o fogo e vão dormir. Quero estar pronto para partir assim que clarear. Ergin, inicie a segundo vigia.
O imenso remador aproximou-se do círculo de oficiais com o andar balançado típico dos marinheiros. Ele, como o restante da tripulação, vestia a túnica que era usada quando estavam em terra, mas não tinha sandálias. Ficou ali parado, pernas separadas, os polegares enfiados no cinto de couro, enquanto a moça se erguia. Ao lado do tamanho dele, ela parecia frágil como um gatinho junto de um mastim. Serkan, então, ficou em dúvida e começou a se erguer.
— Vamos, homem — ordenou Eda, em tom imperial. — E traga água, porque vou querer me lavar.
Serkan voltou a se encostar na pedra, com um tranquilo sorriso nos lábios.
Quando a tempestade desabou, estrondosa, fez a tripulação inteira se erguer pouco depois de ter se ajeitado para dormir. O barulho de carne colidindo com carne foi seguido pelo som de algo grande caindo nas pedras.
— Seu grandessíssimo idiota, filho de uma doentia e desgraçada...
Todos correram pela praia até onde Erdem encontrava-se caído de costas, as ondas lambendo seus pés, enquanto Eda, acima dele, continuava a gritar.
— Não! Não posso nem chama-lo de filho de uma cadela! Nenhuma puta que se respeite permitiria que você mamasse no seio dela! Só pode ser filho de uma porca!
A detalhada descrição dos progenitores do marinheiro, ou da falta de, enchia o silêncio da noite enquanto Serkan abria caminho entre os homens. Quando viu a expressão de espanto no rosto de Erdem e o rosto furioso de Eda, um sorriso especial iluminou os olhos verdes. Esperou que ela parasse de falar para respirar e então avançou.
— Já é o bastante, senhora. Até as estrelas escutaram sua apresentação da família de Erdem. Por que ficou tão zangada?
As mãos apoiadas com firmeza nos quadris, ela o encarou com ira. Durante alguns segundos os únicos sons eram o respirar furioso da espartana e o quebrar das ondas.
— Este...este porco deve ter me confundido com uma daquelas que gosta de mãos de marinheiros. Mostrei a ele que estava enganado.
Serkan arqueou uma sobrancelha e dirigiu o olhar para o marinheiro caído, tratando de fingir-se surpreendido, ao mesmo tempo que acenava um comando silencioso. O remador viu o olhar do capitão, ficou parado, mas depois de longo momento um sorriso infantil surgiu no meio da barba espessa. Enquanto o resto da tripulação olhava, boquiaberta, o peito do remador começou a se agitar em movimentos espasmódicos e, como lava derretida saindo as profundezas de um vulcão, uma gargalhada estrondosa explodiu de seus lábios.
E a tripulação olhava, em verdadeiro estado de choque, enquanto Eda se enfurecia ainda mais.
— Não ouse rir de mim, porco! Venci homens muito melhores do que você!
Ela o teria chutado se ele não recuasse, meio rastejando, para a água.
— Não senhora! — balbuciava o homenzarrão, entre risadas. — Não! Eu não estou rindo da senhora! Juro!
— Chega! — bradou Serkan, segurando-a pela cintura no momento em que ela ia se lançar na água atrás do remador.
— Ele se rende, senhora, e pode saborear a vitória que teve nesta batalha.
Eda parou de lutar e notou que o capitão dizia a verdade.
O remador grandalhão continuava caído, em meio as ondas, enquanto a tripulação toda gritava, assobiava e ria. Mais de um marinheiro fitava a moça com respeitosa admiração. O clima estranho que ela sentira na presença deles desde o começo havia desaparecido. Afinal de contas, não eram mais que homens.
Serkan a seguiu, os olhos no ondulante traseiro e a mente no incrível espírito da jovem espartana. A tensão que se acumulara nele desde que ela se afastara das fogueiras com o marinheiro esvaiu-se lentamente.
Eda não fez qualquer comentário enquanto ele enrolava a capa e a colocava no chão perto do fogo, nem quando fez-lhe sinal para que fosse deitar-se a seu lado. Rígida, como se não aprovasse a proximidade, mas reconhecesse a necessidade de agir assim, Eda permitiu que ele a abraçasse pela cintura e a puxasse para o calor de seu corpo. Quando as chamas não eram mais que brasas e apenas as respirações compassadas dos homens erguiam-se ao redor, ela falou, em voz muito baixa:
— Você mandou aquele homem comigo de propósito, não foi?
— Foi...
— Para testar a mim ou a ele?
— Para mostrar a tripulação do que é capaz a mulher que eles devoram com os olhos.
Depois de pensar por momentos no que acabara de ouvir ela perguntou:
— E se eu não conseguisse lidar com ele?
Apoiando o rosto na cabeça dela, Serkan sorriu.
— Você me derrubou.
— É verdade — concordou a moça, com satisfação selvagem.
Os músculos de Eda perderam um pouco da rigidez quando ela se moveu, procurando uma posição mais confortável na areia irregular. Em compensação, a cada movimento do corpo da moça, os músculos de Serkan ficavam mais rígidos. Todos eles, inclusive o que se achava em contato com as nádegas macias.
— Fique quieta. — sussurrou ele, intensificando o aperto do braço que rodeava a fina cintura.
Os olhos de Eda se abriram muito e ela girou o corpo para ficar de frente.
— Ah, entendo agora qual é seu plano! Mandou-me com o gorila para eu ficar cansada e não conseguir resistir as suas investidas! Assim conseguirá fazer o que ainda não conseguiu.
— Não seja ridícula! — sentir a pressão suave dos seios contra seu peito não permitiu que a frase soasse muito diplomática.
— Ridícula? Ah! Tenho que ouvir isso do homem que me fez passar por puta diante do meu tio e de metade do exército de Limera?
— Quer parar de reclamar?
Serkan imobilizou-a, colocando uma das pesadas pernas sobre ela.
— Não pense que vai me ter sem luta, ateniense!
— Ouvi essa ameaça várias vezes nos últimos dias e já perdeu o impacto. — murmurou ele, desconcertado com o contato do quadril dela com o seu.
— Não é mera ameaça! Mesmo enjoada como estava a bordo do seu barco fedorento eu teria lutado!
Que os deuses lhe dessem paciência! Pediu Serkan.
— Que tipo de homem pensa que sou? Acha que iria me meter com uma mulher de rosto da cor da barriga de um peixe, que gemia alto a ponto de fazer o flautista perder o ritmo?
— Não sei que tipo de homem é, ateniense! — exclamou ela, com a voz repassada de fúria, apesar de baixa. — Você me raptou não uma, mas duas vezes! Deixou-me amarrada ao mastro do barco naquela primeira noite e me mandou como um cordeiro para o sacrifício esta noite!
Fez pausa para respirar e prosseguiu: — Mas também massageou meus pulsos quando estavam machucados e fez o tenente cuidar de mim quando estava passando mal. Sabe? Você me confunde, ateniense!
Como ele não respondesse, Eda bateu-lhe no peito com o punho fechado.
— Que tipo de homem é você? Por que me obrigou a vir?
Serkan passou a mão pelos cabelos escuros, depois a fez erguer o rosto.
— Porque você desviou a espada do seu tio — disse, com suavidade — e porque não gostei do que vi nos olhos dele quando olhava para você, nem gostei do medo nos seus olhos.
— Você viu isso? — surpreendeu-se ela.
— Sim, muito claramente.
— Você me trouxe... para me proteger do meu tio?
— Oh, não, eu a trouxe para mim.
O coração dela parecia querer sair do peito, pelo jeito enlouquecido que batia.
— Então, por que, pelo amor de todos os deuses, não usa o que conquistou? Eu não entendo o seu jogo! Não o compreendo nem um pouco, ateniense!
O absurdo da situação começou a envolver Serkan. Era ridículo estar ali, no escuro, com as pernas trançadas nas de uma mulher que desejava de forma que chegava a doer, ouvindo-a dizer que devia toma-la. Era tão irônico que tinha vontade de rir. Mas duvidava que sua pequena nereida compreendesse o motivo da risada. O mais provável seria ela enfiar as unhas em seus olhos... Respirando fundo, relaxou a mão que segurava seus cabelos.
— Escute-me Eda — sua voz soou enrouquecida — quero você. Eu a quis desde a primeira vez que a vi erguendo-se do mar, vestindo nada além da névoa da manhã e seu maravilhoso cabelo. Teria tomado você na ravina, levado pela fúria da perseguição, se não tivéssemos sido interrompidos. E pretendo mesmo completar o que começamos naquele dia.
Os olhos dela desta vez se arregalaram mais ainda.
— Mas não furtivamente — continuou o capitão. — Não cobertos por uma capa, numa praia com metade da minha tripulação fingindo que está dormindo, para nos observar.
Os olhos dela passaram pelos vultos escuros esparsos na praia. Então, a mão em seus cabelos a fez olhá-lo de novo, e ele acrescentou:
— E sem violência. Não quero amar você lutando, não quero conseguir um alívio rápido.
Eda aspirou o ar com força e Serkan fechou os olhos por um momento. Quando continuou, sua voz era contida e quente:
— Quando nos unirmos, vai ser muito devagar, deliciosamente. Quero ver os seus olhos ficarem escuros de prazer e sentir seus seios endurecerem sob minhas mãos. Quero experimentar a textura da sua pele e ouvir meu nome em seus lábios.
Ele parou, um sorriso irônico se desenhando na boca bem feita.
— Diga: Serkan...vamos, diga.
Eda estava colada a ele dos joelhos aos ombros. Seus ventres se encontravam um contra o outro, um braço musculoso envolvia-lhe a cintura e a grande mão, incrivelmente suave, segurava-lhe o rosto. Ela teve que lutar contra o desejo de erguer os dedos e tocar o pobre nariz machucado.
— Serkan — insistiu ele.
— Porco ateniense — disse ela, com voz trêmula.
A risada dele a fez sorrir e Eda empurrou-o. Serkan soltou o braço e permitiu que ela se virasse para o outro lado.
— Durma — murmurou-lhe ao ouvido. — Não estou jogando nenhum jogo com você, Eda. Estamos dançando a música que os deuses tiram das cordas de suas lira.
Com os olhos abertos na escuridão, o coração acelerado, a mente rodando, ela permaneceu acordada por muito tempo.
Na confusão de seus pensamentos, sabia apenas uma coisa com certeza: não devia se deixar levar pelas palavras escorregadias do ateniense, nem por seus braços quentes, nem pelo calor daquele corpo forte, poderoso, encostado ao seu. Não devia ceder, se pretendesse conservar seu orgulho e honra.
Serkan também ficou acordado, num estado de dolorosa consciência do corpo esguio e cálido aninhado ao seu. No redemoinho de emoções contraditórias, sabia apenas que desejava acima de tudo ouvir seu nome dito com arrebatamento por aqueles lábios e que devia ter cuidado com o desejo. Se não fosse cuidadoso, acabaria se tornando um cativo da paixão, como era sua cativa a pequena nereida. 

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