Capítulo 17

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Com o coração dividido entre uma selvagem exultação e o crescente medo de saber o que acontecera com sua família, Serkan combateu os elementos da natureza, tornados inclementes pelo inverno, para ir levar a Atenas a notícia da grande vitória no mar. Fórmio em pessoa o escolhera como mensageiro. O almirante alternadamente praguejara contra a loucura de Serkan, dizendo que fora uma atitude irresponsável dirigir-se para o barco mercante e fazer uma curva daquele modo, mas também elogiara sua ousadia em distrair os espartanos o suficiente para permitir um ataque louco e totalmente inesperado dos companheiros.
Na sangrenta e caótica batalha que se seguira, os atenienses haviam remado, usado seus aríetes, lutado com desesperada coragem e manobras brilhantes, até que tinham lançando o inimigo em total confusão. Quando a noite finalmente caíra sobre o litoral repleto de cadáveres humanos e restos de embarcações, quando os gritos de vitória enfim se tinham feito ouvir acima dos gritos de dor dos feridos, quando os capitães atenienses por fim se haviam reunido para calcular as perdas, tinham descoberto que haviam recuperado os nove barcos perdidos inicialmente e capturado quase vinte embarcações inimigas.
Esquecendo a exaustão diante da selvagem emoção da vitória contra as piores probabilidades a tripulação do Tétis partiu imediatamente para Atenas, a fim de comunicar o resultado da batalha de Naupactus. A viagem mostrou-se quase tão difícil quanto a batalha.
Remaram durante o restante da noite, os homens tirando forças da determinação de chegar logo à cidade. Com a madrugada, no entanto, desceu uma neblina espessa e impossibilitados de ver qualquer coisa, tiveram de parar numa praia. Ventos contrários acabaram por dissipar a neblina, mas impediam o uso das velas.
A tripulação remou em turnos durante o dia e toda a noite seguinte, os marinheiros se alimentando, apressados, nos bancos para não perder tempo. Entraram no porto amigo de Pagae, no extremo leste do Golfo de Corinto e aportaram junto do istmo estreito. Depois de recolher os remos, percorreram o terreno rochoso levando a embarcação nos ombros e voltaram a lançá-lo na água do outro lado do istmo, no Golfo De Salonica.
Não se haviam passado sequer duas horas quando uma violenta tempestade manifestou-se tão depressa que nem mesmo o ágil Tétis conseguiu escapar. Foi lançado contra os recifes da ilha de Salamis e um grande rombo abriu-se no seu casco.
Andando de um lado para outro na praia, Serkan lutou para conter a impaciência enquanto o carpinteiro da tripulação trabalhava à luz de tochas, colocando uma prancha no local do estrago.
Quando, por fim, entraram no porto de Atenas, ao meio-dia do terceiro dia, a visão inicial que o capitão teve da cidade não dava o menor indício do horror que sabia que ocorria ali.O Partenon erguia-se em toda sua majestade, no alto da Acrópole. Abaixo dele, as ruas pareciam feitas de prata, molhadas por uma chuva recente. Só depois de realizar, apressado, as cerimônias de atracação e seguir correndo para a cidade, acompanhado por Ergin e Erdem, foi que ele começou a ver sinais da peste. Não havia mais nenhuma árvore na passagem larga entre as Longas Muralhas. Tinham sido cortadas,  percebeu Serkan, a fim de gerar fogo para as grandes piras erguidas a espaços regulares, no meio da passagem. Junto de cada pira, esperando que a madeira secasse para mandar seus espíritos na jornada para o submundo, havia pilhas de cadáveres. De olhos fundos, tristes e cansados, mulheres velavam junto dos mortos. O nó frio de medo que se manifestara no estômago de Serkan apertou-se ainda mais quando passaram pelos portões da cidade e começaram a subir as ladeiras inclinadas. Habituado à morte, principalmente à morte violenta, ele achou estranho o aspecto vazio da cidade. Em vez dos choros e lamentações que esperava, parecia que a cidade aceitava seu destino e curvava a cabeça ao desígnio cruel dos deuses. Os poucos cidadãos pelos quais ele e os companheiros passaram andavam com ombros caídos e tinham os rostos marcados pelo cansaço e medo. Nenhuma criança corria ou gritava, muito menos ria; mercadores não anunciavam seus produtos. Mesmo os animais urbanos tinham desaparecido. O único som era a vibração grave das pedras lançadas pelas catapultas de Esparta, depois os baques surdos, quando colidiam contra a muralha norte. Pelos relatos enviados à Frota, Serkan sabia que as poderosas muralhas vinham mantendo as forças espartanas do lado de fora todo esse tempo. Mas agora via que elas também mantinham a morte do lado de dentro.
O nó no estômago apertou-se mais quando um servo magro abriu a porta de sua casa. Uma rápida inquirição confirmou que o velho porteiro estava morto, que fora uma das primeiras vítimas da peste. O coração querendo saltar do peito, tal a violência com que batia, Serkan entrou no pátio. Ergin e Erdem o seguiram.
Ele calculou apressadamente que havia lá menos da metade dos refugiados que deixara ao partir para a batalha, poucas semanas antes. As mulheres e velhos que lá estavam voltaram-se, um a um, quando ele entrou no pátio. Controlando o desespero; observou atentamente seus rostos. Nenhum tinha os olhos castanhos e brilhantes da sua mulher, nem as feições aquilinas e aristocráticas de sua mãe. Os cabelos escuros e cacheados de Kiraz não estava entre as cabeças das crianças presentes.
— Onde está minha senhora? — perguntou a uma das mulheres que o fitava em silêncio.
A mulher apenas fez que não com a cabeça.
Como ninguém se adiantasse com a oferta de informações ou boas-vindas, o capitão atravessou o pátio e dirigiu-se à cozinha. Não havia cheiro de pão assando para recebê-lo, nem se ouvia o tagarelar das escravas atarefadas.
Uma tensão sufocante fechou-lhe a garganta. Subiu ao primeiro piso, seguindo direto para a porta vermelha de seu quarto. Abriu-a num repelão nervoso: havia apenas o vazio ali dentro.
Mesmo sabendo que era uma esperança vã, Serkan foi até o pequeno quarto pegado ao seu. Rezava para achar algum sinal, qualquer sinal, de que ele ainda estava sendo usado. Mas não havia nenhum. Seus baús achavam-se empilhados junto da parede e o chão mostrava-se absolutamente limpo. Ficou parado um momento, as mãos segurando os batentes da porta, a respiração difícil, entrecortada.
Por fim, voltou-se, pensando em ir ver na ala das mulheres. Ao cruzar o quarto para sair, um brilho dourado chamou-lhe a atenção. Lá, no nicho onde mantinha o prato de prata contendo sua coroa olímpica, havia um bracelete de ouro. Enquanto seu coração falhava dolorosamente, reparou de modo automático que o bracelete estava intacto: não tinha sido serrado por um joalheiro. Sabia que só havia um modo para aquela joia estar ali e esse modo era ter sido removida do corpo sem vida de Eda.
Paralisado, Serkan não pensou sequer em tocar nos graciosos golfinhos. Continuou imóvel, enquanto uma dor que não conhecia, uma dor que não tinha ideia de que pudesse existir, rasgou-lhe o peito. Apertou os dentes e um músculo em seu rosto começou a tremer sem controle. Precisou de toda a disciplina que possuía, de cada resquício de sua força formidável para conter o grito que se formava em sua garganta.
Os golfinhos ficaram embaçados diante de seus olhos, nadando no mar da dor profunda que o consumia. Fechou os olhos, enquanto visões de Eda se atropelavam em sua mente. A exótica nereida que surgia das ondas do mar, iluminada pelo brilho da manhã, em meio a névoa da madrugada. A mulher de rosto esverdeado, gemendo, que não aceitava ajuda, nem mesmo quase morrendo de enjoo. A esposa selvagem e ardente a quem se unira numa ilha rochosa, sob um dossel de estrelas.
Ele não saberia dizer quanto tempo permaneceu naquele mesmo lugar, incapaz de se mover, sem conseguir sentir nada além de angústia que, lentamente, pedaço por torturante pedaço, transformava sua alma em gelo e seu coração em cinzas. Alguns segundos. Uma eternidade. O som de um grito feminino finalmente o fez abrir os olhos para um mundo cinza e sem nenhuma vida.
— Ergin!
Lutando para se controlar, Serkan aproximou-se em passos inseguros da escada e viu a irmã abrir caminho entre as pessoas, no pátio, para lançar-se nos braços do marido.
— Piril! — gritou o tenente. — Piril, meu amor! 
Ergin beijou a esposa com ímpeto, depois mergulhou o rosto nos sedosos cabelos ruivos, enquanto ela soluçava, com o rosto escondido no peito largo.
Uma dor imensa apoderou-se de Serkan ao ver a irmã abraçada com o marido. Apertando os dentes com tanta força que chegava a doer, desceu, aproximou-se dos dois e esperou até que Piril ergueu o rosto molhado de lágrimas e o viu. Os soluços dela redobraram ao soltar-se dos braços do marido e correr para o irmão. Enquanto se aproximava, de braços estendidos, Serkan percebeu, com nova dor atravessando-lhe o peito, que não a teria reconhecido caso se cruzassem na rua. A jovem matrona rechonchuda, cheia de vida e sonhos de um futuro feliz tinha desaparecido. Sua irmã se tornara uma mulher magra, de rosto encovado, que olhava para ele com olhos que não acreditavam na existência de um futuro.
— Serkan, agradeço aos deuses você ter voltado são e salvo.
Depois de tentar duas vezes, ele por fim conseguiu falar:
— E eu agradeço a eles por você estar bem, irmã.— Engoliu em seco antes de prosseguir: — Diga-me, como estão os outros?
— Kiraz está bem — respondeu Piril, com os dedos trançados nos dele. — Está lá em cima, com as crianças que não estão doentes.
Ela parou de falar diante da dolorosa exclamação de alívio do irmão. Então, respirando fundo, fitou-lhe os olhos em silêncio, até que criou coragem para contar:
— Nossa mãe morreu há cinco dias.
Por um longo momento irmão e irmã ficaram em silêncio, os dedos brancos, tanta força com que se apertavam. As pessoas que os haviam rodeado dispersaram-se, deixando-os sozinhos em respeito à dor que sentiam.
— E Eda?
As palavras eram como uma faca cortando a garganta de Serkan, mas ele as forçara a sair, sílaba por sílaba. Mais tarde se permitiria lamentar, mais tarde dividiria a tristeza e o sofrimento com a irmã: agora desejava pelo menos ouvir o nome dela.
— Eda ficou com mamãe até o fim. Elas se haviam tornado muito unidas, como irmãs, mais próximas do que jamais imaginei ser possível. Creio que mamãe morreu tranquila por ter Eda ao seu lado.
A ideia de que não a veria porque chegara apenas alguns dias atrasado, quem sabe por horas, destroçava a alma de Serkan.
— Quando Eda... sucumbiu?
A confusão surgiu nos olhos de Piril, engasgou ao tentar falar, mas por fim conseguiu:
— Não! Ela não morreu!
O irmão ficou olhando para ela com uma expressão vazia, como se não tivesse ouvido ou não tivesse entendido o que as palavras significavam.
— O... — balbuciou com evidente esforço — o que você disse?
— Juro, Serkan, Eda não está morta. Aaaiii!! Não quebre meus dedos!
Serkan relaxou o aperto, mas não largou a mão de Piril.
— Ela não está morta? Jura?
— Sim, juro!
— O bracelete — murmurou ele. — Eu vi o bracelete e pensei... pensei...
— Ela está viva — insistiu Piril, tentando tirar os dedos machucados da mão dele.
— Então, chame-a!
— Ela não está aqui... Ai, solte-me!
Maravilhando-se ao ver que ainda podia sentir-se mais ferido, Serkan endireitou o corpo lentamente. Ela não estava morta. Sua Eda não morrera, mas tinha ido embora, deixara-o.
Soltou a mão da irmã.
— Quando ela foi?
Piril levou as juntas dos dedos machucados à boca.
— Hoje de manhã.
Com os olhos baços, Serkan assentiu:
— Então, é isso.
A irmã deixou de soprar os dedos doloridos.
— Você não vai atrás dela?
— Não.
— Serkan, deve ir. Ela não sabia, ninguém sabia, que você chegaria hoje. Eda teria ficado aqui se soubesse, tenho certeza.
— Não — ele sacudiu a cabeça -, é melhor assim.
— Bem, pelo menos deixe-me mandar um recado para ela saber que você está de volta.
De novo ele fez que não:
— É melhor terminar tudo de uma forma limpa — disse, com voz cansada, sem cor. —Ela foi embora e eu jurei que não a manteria aqui contra sua vontade.
Com os olhos arregalados, Piril segurou o braço dele:
— Do que está falando? Não diga que decidiu repudiá-la! Não agora. Não depois de tudo que passamos. Serkan, você não pode fazer isso!
— Não a estou repudiando. Jurei solenemente que a tornaria livre e é o que farei.
— Não pode fazer isso! — a voz de Piril tremia de pranto contido.
Ergin se aproximou e abraçou a esposa. Afastando-o, ela agarrou-se ao braço do irmão.
— Por favor, Serkan! — implorou. — Não mande Eda embora. Precisamos dela aqui. Não tem ideia do que ela fez por nós, por todos nós. Por favor, por favor, reconsidere a sua promessa.
— Piril, pare de chorar — Serkan armou-se de paciência.— Não vou mandá-la embora. Ela é dona da própria Vontade. Eda me prometeu que só ficaria enquanto usasse o bracelete.
— O bracelete?
— O bracelete de ouro, aquela pulseira que dei a ela. Eda tirou-a de alguma forma e deixou-a aqui para me dizer que não se considera mais ligada a mim.Não vou persegui-la mais...Desta vez, apesar de meu coração estar doendo e chorando, vou deixar que Eda vá.
Serkan não soube dizer se tinham sido suas palavras ou a dor crua na sua voz que contiveram a agitação da irmã, mas o fato é que ela parou de chorar no mesmo instante, enquanto olhava para ele atentamente. A confusão surgiu de novo nos olhos cansados e vermelhos da moça, mas logo foi substituída por alívio, porque ela entendera tudo.
— Serkan — disse, meio rindo, meio soluçando -, você tem que me escutar.

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