Torta sem recheio ou cobertura - é a melhor de todas.

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V. Torta sem recheio ou cobertura — você não vai acreditar, mas é a melhor de todas.

— Então é assim que a magia acontece?

Yachi ri, pressionando todo o seu entusiasmo na massa que tinha em mãos, tentando não transparecer toda a euforia em sua voz de ter Shimizu Kiyoko no seu apartamento. — Eu não chamaria de magia...

Shimizu sorri, terminando de lavar as mãos e se aproximando de Yachi no balcão. — Eu, sim. Ainda tenho guardado um pouco a que você fez pra mim...

As bochechas de Yachi se esquentam. Ela havia ido até o estúdio no outro dia. Ela havia entregado a torta de chocolate amargo. Ela havia visto-a dançando e havia ficado até o final e até aplaudido um pouquinho e... talvez elas tenham segurado as mãos até chegar à estação de ônibus. Talvez, talvez, talvez.

— Como posso ajudar? — Kiyoko pergunta, e isso- isso Yachi consegue responder.

Açúcar, manteiga, farinha.

Yachi ajuda Kiyoko a fazer uma segunda massa, e se seus dedos se tocam por alguns segundos a mais... talvez não seja só impressão de quem está lendo.

— Quando você começou... tudo isso?

— Ensino médio. Por aí. — Yachi responde — Eu não participava de nenhum clube e... ficava sem ter muito o que fazer em casa, — ela riu, esperando que o tom da conversa pudesse aliviar-se com isso — assisti alguns programas, fiz algumas pesquisas e tentei algumas receitas.

— E agora você tem trinta e dois tipos diferentes de tortas! — Kiyoko disse, sorrindo e encostando o ombro dela com o seu.

— E agora eu tenho trinta e dois tipos diferentes de tortas. — ela ressoou, espelhando o sorriso bobo da morena.

Os silêncios entre um assunto e outro pouco incomodavam Yachi agora.

— E você?

— Hm?

— Quando começou a dançar?

Kiyoko trouxe mais um punhado de farinha para a massa em cima do balcão, misturando como Yachi havia lhe ensinado a fazer. — Fundamental? — Questionou-se — Algum momento durante o fundamental. Minha irmã mais velha fazia aulas de dança, também. Eu acho que... no início, eu só queria ser igual a ela. Depois... ela desistiu, teve outros interesses. E eu fiquei.

— Pelo resto da vida.

Kiyoko sorriu, pressionou a massa com mais firmeza contra o balcão. Gostou.

— Pelo resto da vida.

Açúcar, manteiga, farinha.

Açúcar, manteiga, farinha... o que vem depois?

Sua mente está em branco.

Yachi imaginaria que ter Kiyoko tão próxima de si — não só fisicamente; ela estando na sua cozinha, no seu apartamento —, mas emocionalmente também, causaria um turbilhão de emoções que explodiriam debaixo da sua pele toda vez que ela sequer pensasse na garota. E, de fato, por algumas semanas, explodir parecia pouco. Mas, agora...

Claro, suas mãos ainda tremiam. E seu coração com certeza acelerava. Sem contar as inúmeras vezes que sentia o sangue subir para as suas bochechas ao ter Kiyoko sorrindo em sua direção (embora esse último parecesse apenas fazer com que Kiyoko sorrise mais, então, gradativamente, Yachi deixou de se importar tanto.)

Mas, em geral, quanto mais Yachi caía no buraco de se apaixonar (E dane-se! que outra palavra poderia se encaixar a esse ponto?!), mais ela se via exatamente assim.

A mente em branco.

As mãos meio trêmulas, mas não suando. O estômago com borboletas, mas não se revirando. O coração batendo forte, mas não por uma ansiedade exacerbada que a faria ativar o modo fugir ou lutar — como se houvesse opção melhor do que simplesmente congelar no lugar.

Então ali estava Yachi.

Yachi Hitoka.

Sem receitas.

Sem ideias.

Sem...

Açúcar, manteiga, farinha.

O que vem depois, Yachi?

Apenas...

— O que vem depois, Hitoka-chan?

Yachi se vira na direção da morena a tempo de perceber a mão dela se erguendo para ajeitar os óculos em seu rosto. Ela ergue a ponte com o indicador, tocando a sua bochecha rapidamente com o polegar. E, normalmente, Yachi não se permitiria notar detalhes tão triviais só porque eles vinham de Kiyoko, exceto que, dessa vez, a ação fez com que um pequeno pedaço da massa colasse na bochecha dela.

Instintivamente, Yachi lambe seu polegar e esfrega o local até que desapareça, da mesma forma que Yachi faz consigo mesma quando algum erro assim acontece. Normalmente, ela nunca pensaria demais em fazer coisas assim. A massa, a receita, a técnica. Mas ela volta aos senso ao sentir o quão suave a pele de Kiyoko é pressionada contra os seus dedos, e a realidade vem colidindo e ela não tem tempo para formular uma desculpa e deixá-la escapar de seus lábios porque Kiyoko está cobrindo-os com os seus.

Hm?

O quê?

Yachi basicamente cantarolou contra o beijo, seus braços voando ao redor do pescoço de Kiyoko quando a sentiu começar a se afastar. Talvez a realidade também tenha tentado puxá-la para longe de si. Não, não, não. De volta ao que você começou.

É estranho — Kiyoko diz que não gosta de coisas doces, mas Yachi sente como se os lábios dela fossem feitos de mel; doces, viciantes, pegajosos. Ela nunca conseguiria se afastar. Ela queria mais, muito mais, então movimentou o rosto, respirando por um curto momento antes de mergulhar de volta no seu abraço. O toque de Kiyoko era revigorante, com cada toque, cada arrastar de suas mãos.

Finalmente. ela pensou, ou ouviu, ou murmurou, as palavras tão certas e tão, tão próximas que não poderiam ser só dela.

Elas se moveram lentamente, como se para compensar a velocidade com qual as coisas se escalaram, néctar na ponta da sua língua e entre seus lábios. Kiyoko repousou seu toque sobre seu pescoço, pingando mel pelos seus dedos, subindo para suas bochechas e deixando um rastro por onde passava.

Açúcar, manteiga e farinha.

Era tudo o que ela sempre precisou.

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