✝
Deus não era cruel, o que não era o mesmo que dizer que ele era bondoso.
Irmã Inês levou o padre até a sala que ficava no fundo da capela, iluminada apenas por uma linha de janelas retangulares e espremidas, com uma arara onde a roupa do padre ficava pendurada e todos os preparativos necessários para a missa. Havia uma portinha baixa para emergências que ficava sempre fechada. Irmã Agnes era a única que sabia onde a chave para ela ficava. Ela deixou-o sozinho com um sorriso sereno, fechou a porta, trancou-se e voltou ao convento saltitando.
Entrou pela porta dos fundos, que dava para a cozinha. Irmã Verônica estava agachada no chão, o hábito escorregando da cabeça, mostrando seu cabelo escuro e cacheado, as mãos enfiadas dentro do pequeno armário, buscando o avental – ela tinha cismado, como ninguém antes já havia cismado, que ele a ajudaria na sua tarefa do dia. Ergueu a cabeça por um instante abrindo os olhos nervosos. Suspirou.
— Como foi? – perguntou desinteressada e voltou a vasculhar.
— Ele está preparando as coisas para a missa. – Deu de ombros.
Encostou-se contra a pia, esticando-se para enxergar a Irmã Verônica. Correu o dedo pela faca pousada naquela pedra fria e molhada. Irmã Bárbara tinha se dado o trabalho de afiá-la no dia anterior, ainda estava boa.
— Nada de diferente?
— Não acho que ele tenha percebido que eu não sou a Irmã Agnes.
— Isso é bom. Não é o ideal, mas é bom. É muito bom que ele não saiba a diferença entre nós. – Levantou-se com o pedaço de pano e fios em mãos. – Evita problemas.
— Ele vai ficar aqui. Vai acabar aprendendo quem é quem.
— Não consigo imaginar que ele seja tão esperto assim.
Irmã Inês riu.
— Vou chamar Ágata – Irmã Verônica anunciou, puxando a faca e escondendo-a no bolso.
Assistiu-a sair com o passo apressado. Levantou o olhar para o relógio discreto que tinham ali. As outras já deveriam estar indo para a capela. Precisava avisar Irmã Agnes, para que ela pudesse avisar a Irmã Úrsula e a nova rotina delas pudesse enfim começar.
Irmã Agnes estava na sala de leitura delas, uma biblioteca pequena com duas estantes de livros apenas, não havia muitas opções de livros que elas poderiam ler, e a lista de livros que realmente eram enviados para elas era ainda menor. Bateu três vezes na porta, como tinham combinado. A mulher no sofá abaixou o livro de capa marrom, virou-se despreocupada e sorriu para ela. Levantou-se ajeitando a saia preta. Irmã Inês acenou com a cabeça: sim, estava tudo pronto. Enfiou a mão no bolso, tirou a chave e pousou-a devagar na mão aberta da madre superior.
— Irmã Verônica e Irmã Ágata já devem estar lá fora – cochichou.
— Eu tenho certeza de que estão. – Passou a mão pela cabeça de Inês.
Assentiu.
Encontrou-se com as outras freiras na capela. Ninguém tinha se sentado. Elas estavam de pé perto ao altar, cochichando alto para que o padre, da sala, escutasse-as conversando. Irmã Inês tinha ido contra a ideia, inicialmente. Não acreditava que era possível existir alguém tão terrivelmente estúpido que não percebesse todo o teatro, mas tinha acabado surpresa com o padre. Quase tinha vontade de rir. Passou no meio daquele acumulado de mulheres com roupas iguais, chegando até a porta de madeira, que se movia desesperada.
— Olha só! Ela chegou. Pode se acalmar – Irmã Bárbara gritou para o homem. Revirou os olhos abrindo espaço para Irmã Inês. – Não sei se ele vai aguentar muito mais sem desmaiar – soprou no pé do seu ouvido.
— Padre Manoel! – Irmã Inês disse, encostando-se contra a porta. – Padre Manoel, fique calmo, por favor. Eu já chamei a Irmã Agnes e ela já está chegando com a chave. Eu não sei o que aconteceu. Realmente não sei... Essas portas são tão velhas – suspirou. – Ela já está vindo, eu garanto isso ao senhor. Vai dar tudo certo.
Ela andou até os degraus que levavam até o altar. Subiu-os erguendo leve a sua saia, os passos lentos e precisos, o som reto dos seus sapatos tocando contra o chão de mármore. Uma cadeira de madeira, o encosto no formato de um triângulo que se esticava numa tentativa angustiante de tocar no teto, os braços longos, o estofado de veludo vermelho fofo e aspirado. Ela se sentou. Estalou o pescoço.
As freiras pararam para assisti-la. Ela sorriu. Jogou a cabeça para trás e prendeu os olhos naquele espetáculo acima da sua cabeça. Deus barbudo sentava no centro de tudo, com Jesus e Maria ao seu lado, os três rodeados por anjos gordos de bochechas rosadas, nuvens transparentes, um céu pálido e cintilante, olhando-as. Os detalhes esculpidos em ouro que envolviam as colunas clássicas chegavam até a pintura meio descascada, nunca cuidada propriamente, jamais admirada como deveria ser admirada. Aquela pintura insistente que sobrevivia apenas com a sua vontade de sobreviver, sem motivo, sem espaço, irracional; nada a sustentava ali em cima a não ser o óbvio: aquela pintura acreditava que era viva e era nova e merecedora, e isso a mantinha intacta, por mais que ninguém jamais a enxergasse.
Irmã Inês era uma pintura no topo de uma igreja esquecida, ela sabia disso, ela tinha absoluta certeza disso.
Então ela teve a única epifania de toda a sua vida: Deus não era cruel, o que não era o mesmo que dizer que ele era bondoso. Ele não era cruel, porque estava permitindo que elas fizessem o que fariam com o padre, mas certamente não poderia ser bondoso na sua negligência. Se Deus não era cruel, se isso não significava que ele era bondoso, portanto nenhuma das duas poderia existir. Não existia crueldade ou bondade, existia o Convento de Santa Olga, fundado em 1709, com sua igreja Barroca e suas freiras abandonadas.
— Nós somos verdade... – ela sussurrou.
— O que disse? – Irmã Bárbara falou apontando para ela.
— Nós somos verdade – afirmou levantando-se. – Nós somos verdade e todo o resto é mentira.
Inês contornou o seu trono. Um oratório protegido por toda aquela graça. Respirou fundo. Abriu-o sem o cuidado usual que tinha com aquela madeira envelhecida. O santíssimo. Inês estremeceu. O corpo e o sangue e tudo o que elas acreditavam estava ali dentro. Ela tinha dedicado toda a sua vida, todos os seus anos de existência, todas as suas chances... Todo ar que já tinha respirado, todas as palavras que já tinha dito, todos os pensamentos que ignorara, tudo sentava dentro daquela caixinha dourada e brilhante.
E o mais crucial: tudo era mentira.
Segurou-a em suas mãos e, com uma força que não se lembrava de ter, arrancou a caixa da parede. Uma das freiras berrou num barulho irreconhecível. Inês caiu ajoelhada no chão. No meio das suas duas mãos pequenas e lisas estava o universo em sua totalidade. Ela soltou uma risada discreta. Prendeu a respiração e abriu a caixa. Inês virou a cabeça para o lado e vomitou todo o seu café da manhã.
Nada.
VOCÊ ESTÁ LENDO
LITURGIA
ParanormalEm 1915, algo aconteceu no Convento de Santa Olga que mudaria a história de São João da Ventania para sempre. * AVISO DE POSSÍVEIS GATILHOS/AVISO DE CONTEÚDO (IMPORTANTE): - Assassinato (explícito); - Menção de vômito*; - Sangue; - Necrofilia; ...