O MOTORISTA

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O motorista não era de São João da Ventania. Na verdade, tinha nascido e ainda vivia em Confiança, uma cidade que era tão próxima, tão pequena e tão imunda que era constantemente confundida por um bairro de São João por quem passava pela estrada que a cortava. Confiança sequer tinha um cartório para registrar o seu povo, mas ele não se importava com o que a sua certidão de nascimento dizia.

Existia nele um certo orgulho ao olhar para aquele acumulado de casinhas recheadas de pessoas que ele sempre conhecera e poder pensar: meu; tudo aquilo era meu. Metaforicamente, é claro. Sua mãe trabalhava como lavandeira para as famílias que decidiam a política de São João, e seu pai era um pedreiro, que estava sempre metido em alguma construção demorada na cidade. Mesmo assim, tudo aquilo era dele e ele sabia disso.

Sua nova condição de vida se parecia com a do povo de São João. O mesmo orgulho que carregava ao mirar a cidade da sua infância era o orgulho que surgia com um sentimento peculiar: estrangeiridade. Quando pisava no bairro em que morava – em que morava sozinho na sua própria casa, casa comprada com o dinheiro que ganhara sozinho e por seu mérito –, ele sabia que não pertencia mais àquele chiqueiro.

E só poderia agradecer a uma pessoa por aquela sensação agridoce de humanidade (humanidade que não restaurada, mas humanidade que lhe era presenteada), o Padre Manoel.

Antes do padre chegar à cidade, ele nunca tinha visto um carro. Sabia que existiam, sim, porém enxergar um com os seus dois olhos era um privilégio que ele costumava não conhecer. Aprendeu a dirigir com o padre Manoel. E talvez aquela profissão de fato tivesse sido uma ideia impulsiva, aprender um ofício que só poderia usar para servir uma única pessoa, mas valia a pena. Não... Sentar-se naquele banco de couro, com suas mãos ao redor daquele volante, o som gritante do vento contra o vidro da janela: total e íntegro controle. Nenhum dos seus conterrâneos conseguiria sonhar em entender um carro.

Lá estava ele, o grandíssimo conhecedor e tomador da máquina protegendo-se dos cheiros grotescos daquele convento nojento.

Ele nunca teria coragem de comentar com o padre, porém se sentia mal por ele, quando se lembrava de que ele era forçado a entrar naquela casa, a rezar naquela igreja, a conviver com aquelas mulheres toscas. Sua opinião não se estendia apenas para as freiras, não, seria injusto com todas as outras mulheres do mundo que também era terrivelmente toscas e desinteressantes para ele. Então, ele se considerava um sortudo, afinal, o seu trabalho lá começava e acabava no carro. Ele sempre estava seguro. Ele nunca voltava fedido para a cidade, infestado pelo odor das freiras e do seu habitat natural. Soltou uma risada apoiando a cabeça contra o banco.

Uma batida na janela do banco do passageiro. Uma garota sorria acenando, o véu já estava na metade da sua cabeça. Ele sorriu. Nada mal para uma freira. Quase a conseguia admirar naquela distância, atrás daquele vidro, sem precisar escutar sua voz ou reconhecer seus trejeitos.

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