✝
O motorista não era de São João da Ventania. Na verdade, tinha nascido e ainda vivia em Confiança, uma cidade que era tão próxima, tão pequena e tão imunda que era constantemente confundida por um bairro de São João por quem passava pela estrada que a cortava. Confiança sequer tinha um cartório para registrar o seu povo, mas ele não se importava com o que a sua certidão de nascimento dizia.
Existia nele um certo orgulho ao olhar para aquele acumulado de casinhas recheadas de pessoas que ele sempre conhecera e poder pensar: meu; tudo aquilo era meu. Metaforicamente, é claro. Sua mãe trabalhava como lavandeira para as famílias que decidiam a política de São João, e seu pai era um pedreiro, que estava sempre metido em alguma construção demorada na cidade. Mesmo assim, tudo aquilo era dele e ele sabia disso.
Sua nova condição de vida se parecia com a do povo de São João. O mesmo orgulho que carregava ao mirar a cidade da sua infância era o orgulho que surgia com um sentimento peculiar: estrangeiridade. Quando pisava no bairro em que morava – em que morava sozinho na sua própria casa, casa comprada com o dinheiro que ganhara sozinho e por seu mérito –, ele sabia que não pertencia mais àquele chiqueiro.
E só poderia agradecer a uma pessoa por aquela sensação agridoce de humanidade (humanidade que não restaurada, mas humanidade que lhe era presenteada), o Padre Manoel.
Antes do padre chegar à cidade, ele nunca tinha visto um carro. Sabia que existiam, sim, porém enxergar um com os seus dois olhos era um privilégio que ele costumava não conhecer. Aprendeu a dirigir com o padre Manoel. E talvez aquela profissão de fato tivesse sido uma ideia impulsiva, aprender um ofício que só poderia usar para servir uma única pessoa, mas valia a pena. Não... Sentar-se naquele banco de couro, com suas mãos ao redor daquele volante, o som gritante do vento contra o vidro da janela: total e íntegro controle. Nenhum dos seus conterrâneos conseguiria sonhar em entender um carro.
Lá estava ele, o grandíssimo conhecedor e tomador da máquina protegendo-se dos cheiros grotescos daquele convento nojento.
Ele nunca teria coragem de comentar com o padre, porém se sentia mal por ele, quando se lembrava de que ele era forçado a entrar naquela casa, a rezar naquela igreja, a conviver com aquelas mulheres toscas. Sua opinião não se estendia apenas para as freiras, não, seria injusto com todas as outras mulheres do mundo que também era terrivelmente toscas e desinteressantes para ele. Então, ele se considerava um sortudo, afinal, o seu trabalho lá começava e acabava no carro. Ele sempre estava seguro. Ele nunca voltava fedido para a cidade, infestado pelo odor das freiras e do seu habitat natural. Soltou uma risada apoiando a cabeça contra o banco.
Uma batida na janela do banco do passageiro. Uma garota sorria acenando, o véu já estava na metade da sua cabeça. Ele sorriu. Nada mal para uma freira. Quase a conseguia admirar naquela distância, atrás daquele vidro, sem precisar escutar sua voz ou reconhecer seus trejeitos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
LITURGIA
FantastiqueEm 1915, algo aconteceu no Convento de Santa Olga que mudaria a história de São João da Ventania para sempre. * AVISO DE POSSÍVEIS GATILHOS/AVISO DE CONTEÚDO (IMPORTANTE): - Assassinato (explícito); - Menção de vômito*; - Sangue; - Necrofilia; ...