✝
O Padre Manoel acordava antes mesmo do sol, aprontava-se e saía da casa modesta em que vivia no terreno da paróquia. Encontrava-se com o seu motorista que já o esperava havia um bom punhado de minutos, parado ao lado do carro magnífico, o maior orgulho do padre. Um carro – e, em especial, um carro daquele porte, tão longo e alto e bem conservado – por si já configurava um patrimônio invejável, mas ali naquela cidadezinha pobre, ridícula e vergonhosa, ele era o único que conhecia o conforto. Toda aquela cidade patética de interior que dependia dos seus próprios pés. Todas aquelas pessoas que se julgavam luxuosas por andarem por aí com cavalos escovados. Nenhuma delas chegava perto dele.
Ele nascera e crescera e planejava morrer na capital. Aquele fim de mundo era um pesadelo que logo passaria, quando ele conseguisse uma reunião com o arcebispo para implorar que o deixasse voltar para o Rio de Janeiro. Ele prometeria não se envolver em nenhum tipo de confusão mais. Juraria. Talvez até se humilhasse, se fosse necessário. Qualquer coisa para escapar daquela cidade maldita.
Manoel gostava de sair cedo para ir rezar a missa para as freiras, era a maneira mais eficaz e fácil de evitar esbarrar com os moradores de lá. Detestava as conversas deles. Eles acenavam "bom dia", comentavam sobre a vida alheia, faziam pedidos para que o padre rezasse por alguma velha doente, tentavam torná-lo consciente dos problemas de convivência no município para convencê-lo a resolvê-los. Ele não se importava. Até onde suas preocupações iam, aquela cidade poderia queimar e revirar-se nas próprias cinzas e ele não se importaria.
A missa no convento era coisa rápida; durava bem menos do que as que ele era forçado a rezar na igreja decadente no centro da cidade. As freiras se importavam menos do que os caipiras e, às vezes, ele até se esquecia de que elas eram parte deles, de que tinham nascido naquelas famílias, vivido naquelas ruas, estudado com aquelas pessoas. Nenhuma delas era um exemplo de classe, isso não, não poderiam ser, mas eram tão mais avançadas e cultas que qualquer outra pessoa registrada naquele cartório.
De vez em quando, sentado numa mesa comprida para tomar café com elas, alguma dizia algo estúpido e ele era forçado a se lembrar de que elas eram filhas de São João da Ventania. Gostava mais delas caladas. Gostava delas, quando estavam sentadas quietas nos bancos de madeira, assistindo-o obedientes com os olhares de admiração religiosa...
Seu motorista desceu do carro para abrir o portão, atravessaram e ele desceu novamente para fechá-lo. Manoel esperava o homem voltar para a sua posição de trabalho e resmungava o que sempre resmungava nos domingos:
— Essas freiras precisavam de alguém para tomar conta desse desgraçado.
O motorista soltava uma risada educada e eles continuavam pelo caminho, atravessando as rosas, até a porta de madeira com três degraus de pedra que o levavam até ela.
Naquele domingo, ele não esperou que o seu empregado abrisse a porta do carro para ele, não porque tinha recebido a epifania divina de que ele era só um homem, mas porque percebeu que a freira que o estava aguardando era uma diferente da freira de costume. Manoel sabia o nome da madre superior, Irmã Ana, mas não sabia o nome das outras. Em verdade, mal conseguia diferenciá-las e culpava a roupa que eram forçadas a usar.
O ar acertou-o com um tapa bruto. Manoel engoliu o seu vômito. Tirou um lenço do bolso da camiseta e cobriu a boca e o nariz. Tentou disfarçar com uma tosse sem graça. A freira continuava acenando tranquila. Aquela doida maldita. Virou-se para o seu motorista. Ele também prendia a respiração, sem saber onde se apoiar, as mãos tremendo enquanto seu estômago se revirava. Tentou produzir qualquer som, mas não conseguia, mal conseguia se mover. O motorista não aguentou mais a espera, ele voltou para dentro do carro, mexendo os braços frenético, desesperado para afastar aquele odor inexplicável, fechando as janelas em pura agonia.
Podre. O terreno. O casarão. As rosas. As freiras. Tudo estava podre.
Manoel ainda tentou, por trás das suas costas, abrir a porta do seu carro, mas estava trancado. Ele estava trancado para fora com aquele cheiro de carne estragada... Caiu apoiado no veículo. Conhecia o cheiro.
Fechou os olhos. Conhecia o cheiro. Conhecia. Tinha certeza de que conhecia. Lembrou-se.
Lembrou-se.
Um ano atrás. O motivo do seu exílio. Havia um ano, ele estava parado na frente de um túmulo escancarado, terra jogada para todos os lados, acompanhado de coveiros e um amontoado de médicos e advogados. O caixão de madeira já começava a fragilizar. Derrubaram-no contra o amontoado marrom quase líquido. Os pregos inúteis permitiram que ele se abrisse e o cadáver da mulher rolasse para fora. Ela estava morta já fazia um mês. A pele de um azul esverdeado pálido, as larvas saindo do seu nariz, da sua boca, os mosquitos acumulando-se ao longo do que sobrara dela, o cabelo ainda perfeitamente loiro e apagado. Ele agarrou-se no metal. Precisava vomitar. Precisava.
Conhecia aquele cheiro.
Abriu os olhos. Sufocou um grito. A Irmã estava a poucos centímetros do seu rosto, com uma expressão sublimemente vazia. Tentou engolir a saliva que se acumulava contra os seus dentes, mas sua garganta estava fechada, cuspiu contra o lenço branco como um doente.
— Vamos, padre – a Irmã cochichou. – Tenho certeza de que o senhor não quer se atrasar.
— O que é isso? – murmurou.
— Isso o quê? – A freira olhou para os lados com as sobrancelhas curvadas. – Está tudo como sempre esteve. O senhor está bem? Precisa se deitar? – Esticou a mão para segurá-lo pelo braço. – A Irmã Clara é uma ótima enfermeira, posso pedir que ela venha dar uma olhada no senhor.
Manoel não respondeu. A Irmã sorriu. Ergueu o outro braço, abaixando devagar o lenço que protegia o seu rosto. Ele tentou impedi-la ou, ao menos, achava que estava tentando impedi-la. Qualquer esforço que talvez tenha existido fora em vão. A Irmã segurava o pano entre os seus dedos, dobrando-o despreocupada e colocando-o num bolso escondido na sua roupa. Ele ainda insistiu para prender a respiração. Não. Não poderia sentir aquele cheiro de novo. Não.
E ele respirou.
Respirou e tudo estava bem. Arregalou os olhos. Tudo estava como sempre esteve. O perfume das rosas. Desceu o olhar para aquela mulher estranha na sua frente, mulher dos cílios compridos e os olhos claros. Ele abriu um sorriso com uma risada quase envergonhada, balançando a cabeça e coçando os cabelos.
— Eu sinto muito, Irmã – disse inclinando-se por cima dela. – Não sei o que aconteceu.
— Não é problema algum. Posso chamar a Irmã Clara, se quiser...
— Não – interrompeu erguendo o dedo. – Não, eu estou bem. Foi só uma vertigem. – Ajeitou a postura. – Então... Vamos?
VOCÊ ESTÁ LENDO
LITURGIA
ParanormalEm 1915, algo aconteceu no Convento de Santa Olga que mudaria a história de São João da Ventania para sempre. * AVISO DE POSSÍVEIS GATILHOS/AVISO DE CONTEÚDO (IMPORTANTE): - Assassinato (explícito); - Menção de vômito*; - Sangue; - Necrofilia; ...