IRMÃ AGNES

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Cada madrugada que chegava trazia consigo um dos sonhos da madre superior, a Irmã Agnes. Era um sonho tão íntimo e tão secreto que, mesmo o vivendo por meses e mesmo sabendo que não o deveria ter, ela era incapaz de encontrar em si a coragem para assumir a vergonha de confessá-lo.

Toda noite ela era visitada por um anjo. Não um anjo de verdade e não visitada no mundo físico, não. Toda noite a Irmã Agnes enxergava um homem no seu quarto úmido, estreito e de paredes mal pintadas. Não qualquer homem, mas um homem alto e de ombros largos e que brilhava desenfreado no escuro.

O anjo entrava no quarto sem bater na porta, sempre no mesmo horário, três e meia da madrugada, no mesmo horário que o cheiro de carne podre começava a soprar dos chãos do convento. Por mais que não fosse necessário, por mais que ele já emanasse toda a luz que eles precisavam, por mais que fosse um sonho e Irmã Agnes conseguisse ver tudo com uma nitidez que não existia no mundo real, ele acendia uma vela assim que fechava a porta. O fogo subia até o teto, dançava num ritmo apressado, movendo-se para todos os lados, formando figuras que não deveria formar. E ela fingia dormir, enrolando-se na coberta e tentando não rir. Sabia exatamente o que aconteceria depois e nada restava a não ser esperar, e como ela esperava, esperava como se ela não existisse nos instantes que não eram aqueles no segredo do seu quarto.

Irmã Agnes não o olhava nos olhos ou encarava o seu rosto. Sequer quando ele puxava seu cobertor e era revelado que ela não estava usando a sua camisola, nem qualquer peça de roupa. Não. Não poderia olhar para aquele homem, porque se olhasse, não conseguiria olhar para o padre na missa de domingo, e isso sim seria inaceitável.

Ele a puxava pelos pés até a beira da cama. Ela ria alto, batendo a bochecha contra o colchão, e ele empurrava sua cabeça com a mão larga que cobria todo o seu rosto pequeno, redondo e rosado. Ela não conseguia se mover para olhar para qualquer outro canto: era forçada a fixar sua atenção na parede descascada com uma cruz pendurada na parede e uma imagem enorme e colorida de Nossa Senhora; ela ardia naquela humilhação, mas não conseguia fechar os olhos. Irmã Agnes não via mais o que o seu amante imaginário fazia, porque os conhecimentos conscientes e inconscientes de uma freira são limitados, mas ela ainda sentia. Sentia tudo. Sentia os beijos nos cantos das suas coxas, as unhas cravando na sua pele macia, a respiração ofegante caindo sobre ela. Sentia tanto que quase se convencia de que aquilo era a sua realidade e a sua vida como freira era o sonho.

Quando o relógio marcava cinco e meia, ela se levantava e rezava um Pai nosso ajoelhada em frente ao seu altarzinho antes de sair do quarto – rezava fervorosa na esperança de que o altar a perdoasse por tudo que testemunhara na madrugada.

O dia começava quieto: todas as freiras se reuniam no salão alongado, numa mesa de madeira enorme com cadeiras desconfortáveis. Depois do café da manhã, elas iam para a capela, rezavam um rosário, às vezes nem isso, nenhuma delas era particularmente inclinada à arte da oração. A obrigação religiosa encerrada, elas tinham todo o tempo do mundo para si e pouca coisa real que fazer. Bordados. Xadrez. Costura. Reler as passagens da bíblia. Imaginar uma vida. Limpar e limpar e limpar e limpar e limpar o convento. Trocar os lençóis das camas. Contar as imagens de Jesus crucificado. Encarar a pintura do Papa Pio XI, um exemplo de homem que não sabia que elas existiam, mas para quem elas dedicavam toda a existência.

Houve uma época em que recebiam alguns visitantes, geralmente nos sábados, turistas que passavam por acaso na cidade e escutavam histórias da arte abandonada naquele convento esquisito. Finalmente, uma mudança na rotina! Uma amostra da atenção que tinham negado, quando escolheram o hábito. E em algum momento, elas perceberam que poderiam desaparecer, e desde que deixassem o portão aberto, os visitantes continuariam aparecendo e ninguém daria queixa do sumiço das quinze mulheres.

Talvez fosse verdade que elas foram egoístas, quando tomaram a decisão de fechar as visitas para a capelinha. Talvez fosse verdade que nenhuma delas tinha a vocação para o ofício que escolheram seguir. E talvez fosse verdade que nenhuma delas tinha escolhido aquela vida no convento.

Irmã Agnes sabia que ela nunca tinha feito aquela escolha, sabia que a escolha tinha sido feita por ela. Um jogo de azar com Deus. Sua mãe prometera que se sobrevivesse àquela gravidez já em idade avançada, abriria mão da filha e entregaria a coitada para o convento. E Irmã Agnes foi azarada o suficiente para nascer daquela gravidez. Tinha um irmão que nascera depois, mas sem promessas. Não conversava com ele, nem com nenhum dos irmãos mais velhos que tinha, porém escutou que ele tinha se casado e se mudado para São Paulo. Ela estava lá onde sempre esteve sem nunca se mover. Tinha sido criada por todas as freiras que se transformaram em lápides no cemitério ao fundo do terreno, criaria todas as que viriam para tomar o seu lugar e só então se moveria, viraria também uma pedra com letras cravadas e enfeitada com musgo.

A única verdade de fato, no entanto, era que as freiras conversavam, sim, conversavam as suas conversas sem vestígio nenhum de formalidade.

Irmã Agnes fugia dos seus sonhos quando se ajoelhava para confessar com a voz do padre, mas na mesa do café da manhã, ela discutia cada detalhe. Cada movimento, cada sensação, cada grito, cada mudança de uma semana para a outra... Perdiam a noção do tempo escutando a narração burlesca. Eram os sonhos toscos da Irmã Agnes que as unia. Por causa deles, todas escondiam a vontade de rir, quando o padre chegava para rezar a missa no domingo. Por causa deles, todas tinham piadas que contar pelos corredores que ninguém além delas entendia. E, por causa deles, elas tinham arquitetado juntas a sua ideia mais magnífica.

Era aquele cheiro de pele apodrecida e enfiada para dentro que tinha fomentado a primeira faísca da ideia. Tudo que tinha começado como uma brincadeira entre elas, como uma situação hipotética, uma hipótese que a cada adição ficava mais e mais tentadora, terminara num esquema meticulosamente planejado. Seria uma graça. Elas teriam mais uma história compartilhada da qual ririam durante o café da manhã e lembrar-se-iam ternamente antes de dormir.

Domingo começou como todo dia começaria.

Irmã Agnes se sentou na ponta da longa mesa do salão. Assim que suas costas se encostaram à madeira dura que deixava marcas na sua pele, as outras freiras começaram a tomar os seus lugares. Não havia o burburinho usual das manhãs geladas do convento. Silêncio como nunca antes existiu silêncio sentava em cada espaço que elas não ocupavam.

Então, Irmã Bárbara, mulher alta com um queixo pontudo e um nariz terrivelmente pequeno, tossiu forçando todas as cabeças na sua direção.

— Estamos decididas em quem vai tomar conta deles? – ela sussurrou.

— Sim – Irmã Agnes respondeu. – Sim, Irmã Ágata e Irmã Verônica tomarão conta deles. – Esticou o pescoço, buscando pelo rosto quadrado e cheio de sardas na multidão. Sorriu. – Irmã Inês, peço que acompanhe o padre até a capela hoje. Diga a ele que tive um imprevisto, tenho certeza de que não irá se estender no assunto.

— Por que ela? – Irmã Bárbara tentou protestar.

— Porque ela conseguirá convencer o padre de que não há nada fora do ordinário.

— Não há nada fora do ordinário – Irmã Inês repetiu risonha.

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