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A sugestão de queimar tudo era uma estupidez monumental – na opinião de Irmã Ágata –, um pensamento terrível e mal analisado que só nascera pelo desespero de Verônica; o fogo poderia alcançá-las, o fogo poderia chegar ao casarão, poderia queimar todo o jardim e elas todas acabariam morrendo presas por trás daquelas chamas. Ágata esperou Verônica se acalmar para dizer isso a ela. Então, as duas se sentaram na grama com as costas apoiadas no veículo, esperando o momento inevitável em que Irmã Úrsula sairia do convento com uma caixa de fósforos.
— Quando você acha que ele vai começar a feder? – perguntou hesitante.
— Isso demora uns dias.
— Tem certeza?
— Sim, eu tenho certeza. Nós estamos bem.
Os anos no convento fizeram com que ela perdesse o costume com os corpos. A cabeça do cadáver estava jogada para fora do carro, pendurada com os olhos abertos e a boca sangrenta a alguns centímetros dela. Tentava fingir que ele não estava lá. Talvez, num dia menos ensolarado e menos conturbado, Ágata tivesse percebido que o mais razoável a se fazer com aquele homem morto seria prepará-lo como os seus pais preparavam os corpos na funerária da família. Mas, o sol rachava o solo do terreno e todos os eventos enrolavam-se num único nó gigante e irreconhecível.
Toda vez que Irmã Úrsula passava pelas portas, ela precisava inclinar a cabeça para baixo e entortar o seu pescoço, para evitar bater a sua testa nas paredes. Ágata levantou-se assim que a figura surgiu de dentro do casarão. Correu até ela. Verônica sequer se moveu.
— Eu preciso de um – falou.
— Não – a voz rouca de Irmã Úrsula respondeu ofendida. – Não. Isso é para a igreja.
— Está maluca. Eu só preciso de um. Um é o suficiente para mim.
— Para aquela coisa?
— Para o homem, sim.
As rugas na testa da Irmã Úrsula se moveram.
— Onde?
— No estábulo. Acho que conseguimos levar o corpo até lá. Ele não parece ser tão pesado.
— E a coisa?
— O carro? Vamos pensar nisso depois. Vai demorar para se tornar um problema. O homem é mais imediato.
Irmã Úrsula chacoalhou a cabeça, mas entregou a caixa de fósforos para Ágata.
— Vou esperar na igreja. Peça para que Irmã Verônica leve para mim depois. E peça para que ela coloque alguma roupa também. Jesus Cristo, nós não andamos nuas por aí, Irmã Ágata.
— Sim, sim, vou dizer isso para ela.
Esticou o braço. Irmã Úrsula pousou a caixa na sua mão e seguiu seu caminho até a igreja.
Se Ágata tivesse de adivinhar, diria que já não tinham cavalos no terreno havia mais de uma década. Ela mesma não se lembrava de animais lá. Desde que pisara no convento pela primeira vez, com quinze anos, o estábulo estava vazio. Irmã Agnes dizia que, quando ela era criança, todos os cavalos ficaram doentes e tiveram que ser fuzilados. Ela nunca especificou qual a doença nem o ano, mas não existia motivo nenhum para duvidá-la. O convento nunca mais tentou ter animais, depois da epidemia.
Enrolaram-no num lençol, não para escondê-lo, mas porque Verônica achava que as chamas o envolveriam com mais rapidez, se estivesse preso num longo pedaço de pano. Ágata carregava o homem pelos braços, enquanto Verônica pegava com força nos pés dele. Uma trilha de sangue acompanhava-as.
A madeira do estábulo já estava apodrecida, comida por cupins e enfraquecida pela umidade da noite. Era – como elas gostavam de dizer – um verdadeiro milagre que a estrutura não tivesse desabado por completo ainda. No fundo, Ágata não conseguia se soltar da ideia de que o estábulo as estava esperando. Era a única explicação que ela enxergava para a sua resistência. O estábulo resistira por anos apenas para que elas pudessem ter uma fogueira onde largar aquele cadáver. Ela quase riu. Sim, era tudo ação Dele.
Colocaram o corpo no meio de um amontoado de restos de madeira que encontraram no chão.
As duas se deitaram contra a grama. No horizonte, as chamas aumentavam e lançavam-se para o alto, alcançando o teto do estábulo, espalhando-se por toda aquela carcaça, a fumaça pincelando o azul.
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LITURGIA
ParanormalEm 1915, algo aconteceu no Convento de Santa Olga que mudaria a história de São João da Ventania para sempre. * AVISO DE POSSÍVEIS GATILHOS/AVISO DE CONTEÚDO (IMPORTANTE): - Assassinato (explícito); - Menção de vômito*; - Sangue; - Necrofilia; ...