Despedidas e recomeços

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Narrado por Hélia

          "O nosso amor, ele não cabe nesse mundo. A gente não conseguiu encontrar um lugar para ele. Mas Deus foi bondoso com a gente. Ele nos permitiu viver pelo menos uma noite esse imenso amor". Essas foram as últimas palavras que dirigi a Leal, já não conseguindo mais conter as lágrimas que insistiam em brotar dos meus olhos. Talvez no fundo eu ainda tivesse esperança de que ele pudesse ser menos racional que eu naquele momento, de modo a mudar o rumo daquela conversa de despedida. Porém, para a minha decepção, sua lucidez foi como uma flecha nas minhas migalhas de expectativa. "Eu me lembro de cada detalhe daquela noite. Cada detalhe. Eu queria que aquela noite não acabasse nunca mais", foi o que ele me disse antes de sair por aquela porta e me deixar ali sozinha, apenas com um misto de sentimentos que eu não saberia explicar.

          Minutos depois, Fidélio, meu grande amigo, chegou e me abraçou forte, exatamente como eu precisava naquele momento. Aos poucos meu choro foi cessando ao passo que minha ficha caia. Era definitivo, Leal havia escolhido Iolanda, mas a minha vida não se resumia àquele amor. Decidi que, a partir daquele instante, viveria verdadeiramente para mim, em prol da minha felicidade. Imersa nos meus pensamentos, lembrei do motivo inicial da conversa que acabara de ter com Leal: a viagem proporcionada a mim por JP, que me amou sem medidas até o fim de seus dias, mesmo não havendo reciprocidade. Logo antes de morrer ele soube que tinha um filho e fez questão de deixá-lo na responsabilidade de me levar para conhecer o mundo, além de fazer turnês com minhas coreografias. Em meio ao caos que havia se transformado minha vida, aquela possibilidade parecia ser uma luz no fim do túnel, assim aceitei sem pensar muito.

          Duas semanas se passaram desde aquele episódio e eu viajaria em dois dias. Leal e eu não voltamos a nos encontrar, acho que foi melhor dessa forma, não queria mais sofrer. Nesse período eu estava especialmente cansada e quase nenhum alimento era aceito pelo meu estômago, o que associei à correria dos preparativos para a viagem. Fidélio sugeriu que eu procurasse um médico para embarcar tranquila, mas não achei necessário. Aproveitei para me despedir do meu filho, até porque passaria alguns meses sem vê-lo e, só de pensar, a saudade já me consumia. Fomos ao cinema, passeamos e conversamos bastante. Ver o Zeca como um adulto não era nada fácil para mim, parecia que passar um tempo fora e deixar ele sozinho era ser uma mãe desnaturada, mas eu tinha que aceitar que ele não era mais uma criança.

          Chegou o dia da viagem e eu estava bem empolgada. Zeca não pôde me acompanhar até o aeroporto, porém Fidélio fez questão de ir comigo. Eu estava me aproximando da sala de embarque quando um homem parou na minha frente e me chamou pelo nome. Ele era extremamente alto e bonito, mas eu não tinha lembranças de conhecê-lo, então permaneci sorrindo calada, o que durou poucos segundos, pois logo ele revelou ser o filho do JP. Prontamente troquei o braço do Fidélio, o qual estava enlaçado no meu, pelo do rapaz que acabara de conhecer. Nem me despedi direito do meu querido amigo, mas ele deve ter compreendido minha situação. Caminhamos em direção ao embarque e descobri que meu parceiro de viagem se chamava Miguel. Nosso primeiro destino seria Paris e eu estava radiante com aquela situação.

          Tão cavalheiro quanto o pai, Miguel puxou conversa quando nos acomodamos no avião:

— Por fotos eu já conseguia compreender um pouco da sua beleza, Hélia, mas pessoalmente estou ainda mais encantado.

— Ah, não é para tanto. Mesmo assim agradeço pelo elogio! Vejo que você herdou a gentileza do seu pai. — respondi um tanto encabulada pelo comentário.

— Estou sendo sincero. Em toda minha vida, nunca vi olhos tão bonitos. Mas não quero que fique envergonhada. Bom, eu já andei pensando em algumas ideias em relação às turnês... — ele tratou de mudar de assunto e conversamos bastante durante o voo.

          Eu não podia negar que Miguel era encantador, mas certamente tinha idade para ser meu filho. Em meio às palavras que trocávamos, eu percebia seu olhar fixo em meus olhos, mas ele desviava para a minha boca em alguns momentos. Era um rapaz muito culto, sabia conduzir uma conversa como poucos jovens, e isso me fez admirá-lo. Porém, por melhor que o papo estivesse, o voo de mais de dez horas de duração fez aflorar em mim um sono descomunal. Não sei ao certo por quanto tempo dormi, só acordei quando as aeromoças estavam passando para servir o almoço. Confesso que minha barriga estava vazia, mal havia me alimentado naquele dia, mas foi só sentir o cheiro da comida que meu estômago embrulhou. Miguel me olhou preocupado pela cara que eu fiz, mas prontamente me ajudou a levantar e andei em passos acelerados em direção ao banheiro depois que pedir para ele não me acompanhar, pois já estava vindo atrás de mim.

          Após me recuperar, voltei para meu assento e Miguel perguntou ansioso:

— Está se sentindo melhor?

— Sim, foi só um mal-estar. — respondi.

— Fiquei preocupado, você praticamente voou da poltrona.

— "Voar", um verbo adequado para quem está nesse momento em um avião. —  tentei descontrair para quebrar o clima e ele riu, me oferecendo um copo de água em seguida.

          Depois de mais algumas horas, finalmente chegamos em Paris, a "Cidade Luz". Me senti aliviada por pisar em terra firme e não consegui conter minha excitação pela nova fase que estava se iniciando. Pegamos as malas na esteira e seguimos para o hotel de táxi. Não era a primeira vez que eu estava ali, mas olhava atentamente pela janela a beleza daquelas ruas. Vez ou outra eu retornava o olhar para dentro do carro e percebia Miguel me analisando, o que me deixou um pouco tensa. Porém não demorou muito para que chegássemos ao hotel. Fizemos o check-in e entramos no elevador, que estava vazio. Virei meu rosto para frente e vi o rapaz se aproximar perigosamente de mim. Foi questão de segundos para sentir seus lábios nos meus e eu não conseguia raciocinar direito. Meu corpo foi prensado contra o espelho e eu não parava de pensar nos braços de Leal me envolvendo no dia que ele decidiu fazer uma "reunião de condomínio" no elevador. Em seguida a porta foi aberta e tomei um susto, me afastando rapidamente de Miguel e tentando me recompor. Eu estava ofegante, assim como ele, e não tinha coragem de falar nada naquele momento. Ele podia ter muitas qualidades, mas era apenas um garoto, esse beijo não poderia se repetir.

          Seguimos pelo corredor em direção aos nossos quartos sem trocar uma palavra, mas, ao chegar na porta do meu, Miguel decidiu abrir a boca:

— Hélia, eu nem sei o que dizer. Por favor, me perdoe! Eu não sei o que está acontecendo comigo. — ele fez uma pausa e respirou fundo — Espero que não fique chateada comigo, eu não tive intenção de constranger você.

— Tudo bem, Miguel. Vamos fingir que nada aconteceu, certo? — segurei o cartão do quarto e continuei — A viagem foi exaustiva, acho melhor descansarmos.

— Claro, boa noite!

— Boa noite! — respondi antes de me virar e entrar no meu quarto.

          Tirei meus sapatos e me joguei na cama. Precisava digerir os acontecimentos. Estava em Paris com um rapaz incrível que acabara de me beijar, prestes a iniciar uma temporada de turnês pela Europa, mas meu coração não parecia responder à minha razão. Desde que lembrei de Leal no elevador, meus pensamentos não me deixaram mais em paz. Flashes de momentos que passamos juntos começaram a permear minha mente. Fechei os olhos e pude imaginar suas mãos grandes passeando por cada parte do meu corpo, sua língua explorando minha boca... Fui obrigada a abrir os olhos quando percebi que aquilo já estava indo longe demais. Comecei a sentir muita raiva do Leal por ele ter domínio sobre os meus pensamentos mesmo de longe, e ainda por cima tendo escolhido outra mulher, que provavelmente estaria ao seu lado naquele momento. Meu sangue ferveu e fiquei indignada comigo mesma. Como eu poderia continuar tão dependente daquele homem?

          Lembrei também de Miguel. O que teria o levado a me beijar daquele jeito no elevador? Em seguida, decidi tomar um banho para relaxar e esfriar a cabeça. Enchi a banheira enquanto me despia e tentei me concentrar na maravilhosa sensação que aquela água morna trazia à minha pele. Por alguns instantes só existia eu ali, até que novamente lembranças com Leal invadiram minha mente. Inúmeras vezes dividimos o banho em meio a muitos carinhos. Parecia não adiantar todas as minhas tentativas de fugir, pois esse homem dava um jeito de ocupar minha cabeça. Depois disso decidi colocar uma camisola e me deitar na cama. Em pouco tempo o cansaço me venceu e permitiu que eu recuperasse as energias necessárias para a nova fase que começaria na minha vida.
         

Em nome do amorOnde histórias criam vida. Descubra agora