iii. círculos do inferno

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Caro Rhys,

— Vocês não vão acreditar no que eu consegui! — disse Maé, batendo sua bandeja ao meu lado na mesa do refeitório. O estrondo do metal duro me fez sobressaltar no banco junto com os feijões anêmicos que voaram de suas torradas. Alguns pobres deles morreram esmagados sob o peso de seu traseiro antes que pudessem gritar. Não acredito que tenha mais que cinquenta quilos, mas a força com que pulou no assento quase me fez cair dele (de novo).

Acordara tão cedo hoje que minhas pálpebras mal conseguiam lutar contra o grude da remela. E ter de lidar com Maé a tal hora da madrugada me deixou ainda mais exausto antes mesmo de responder-lhe qualquer coisa. Você bem sabe como prefiro passar meus primeiros, no mínimo, trinta minutos acordado em pleno silêncio só existindo, porque qualquer interação me deixa de mau-humor; coisa que Maé não reconheceu — ou não se importou — ao se sentar tagarelando ao meu lado. Muito do lado, devo destacar.

Tentando me afastar da proximidade desnecessária, perguntei:

— O quê?

Sob o capuz de sempre, um sorriso travesso e olhos brilhantes foi tudo o que tive como resposta. Também não tive tempo de perguntar mais nada, pois Maé já estava quase se engasgando com o próprio café-da-manhã para eu conseguir entender qualquer coisa que pudesse ter a dizer. Apesar da fisionomia pequena — e de todas as ofensas que alguém poderia profanar contra a culinário de uma país —, comia feito um leão. Um leão hiperativo mas muito magro. Admira-me muito alguém ter tanta energia num lugar feito para sugar sua vida.

Voltei a atenção a minha própria bandeja enquanto tentava me equilibrar no pouco espaço que sobrara na ponta do banco. Encarava meu prato, esperando qualquer vontade de comer. Queria mesmo te dizer que agora consigo engolir algo sólido ao acordar, mas, mesmo que tenha acesso a alimentos apenas nos horários demarcados, ainda é difícil eu ter apetite. Se não fosse por Fred vigiando de soslaio no canto perto das portas de saída, eu nem estaria no refeitório nesse momento.

— Paciência, meu jovem Alex. — Tocou levemente em meu queixo com a ponta de um talher com o objetivo de chamar minha atenção, o tom de voz como se tivesse anos de experiência e não pelo menos dois a menos do que eu. Na mesma fração de segundo em que olhei para o lado, Maé desviou o rosto para sua refeição. Os ovos fritos sofrendo numa batalha perdida com a faca de plástico, criando uma meleca de caldo de feijão e gema.

Então, Rhys, em alguma das outras cartas talvez eu tenha mencionado sobre o pessoal do contrabando de itens proibidos. E talvez não acredite que eu esteja com medo de levar uma surra de uma pessoa de aparência tão "singela". Mas eu juro: Maé é o cérebro de todo o esquema. Não sei dizer como convenceu os valentões a lhe dar proteção, nem como arranja a mercadoria ilegal. Tudo o que eu sei é que quase como uma máfia e que não devo subestimar seus poderes. Problemas são o que menos preciso, caso ainda queira minha licença.

— Que... negócio é esse? — disse a americana de repente, e logo me lembrei de sua presença. Só Maé para fazer sua aura irritante me ser ofuscada. Também foi a primeira vez no dia em que ouvi sua voz, e confesso que preferia que assim continuasse, mas é inegável (espero mesmo que isso nunca chegue a seus ouvidos!) que ela foi o motivo de eu ter esperança de nos encontrarmos.

Olhei para a garota sentada do outro lado da mesa. Enojada e receosa, cutucava as rodelas escuras em seu prato como se pudessem pular dali sozinhas e atacá-la a qualquer momento. Diferentemente dos dias anteriores, sua aparência estava cada vez menos "desleixada". Nada de maquiagem e o cabelo castanho-escuro quase morria sufocado em um coque que puxava até os neurônios de seu cérebro, nem um cachinho escapava. Ela mal conseguia mexer as sobrancelhas.

— Morcela — respondi.

Chouriço! — falou Maé no mesmo instante. Como o refeitório estava praticamente vazio ainda, sua voz ecoou por todo espaço, e algumas cabeças curiosas se viraram em direção a nossa mesa.

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