iv. bandeira branca

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Caro Rhys,

Espero não acabar criando um incêndio maior do que já tenho na minha vida enquanto escrevo para você.   ̶E̶u̶

...

Desculpa, Rhys. Não sei se consigo escrever hoje.

...

São quase quatro da manhã, e o sono não vem. E acho que o ranger de minha cama velha já deve ter acordado até o pessoal lá no vilarejo. Ben sibilou em pedido de silêncio ao menos umas dezoito vezes até o momento, mas minha cabeça não para de pulsar com pensamentos ruins. Sinto como se literalmente estivessem correndo pelas curvas de meu cérebro, fazendo os fios de cabelo pularem elétricos. E um amargor desliza por minha língua até a garganta, como se tivesse mastigado raiz de gengibre pura (e eu não levei sequer água à boca desde o intervalo do almoço).

Merda. Espero que que consiga ler onde caiu água agora.

Não tenho mais o telhado para me abrigar, então tudo o que me resta é escrever na louça fria da banheira sob a luz de um dos meus isqueiros ilegais (e realmente acho que devo me livrar deles também antes que as coisas piorem mais ainda).

Ah, desculpe pelas manchas de sangue também.

Algo em meu inconsciente provavelmente já sabia que não deveria ter deixado a cama pela manhã. Sabe quando eu simplesmente acordava sem energia alguma e até mesmo o ato de pensar parecia um fardo, Rhys? Hoje despertei exatamente assim. A diferença entre antes e agora é que você estava comigo. Você sempre estava.

Você estava para me abraçar bem forte enquanto ambos tremíamos de medo e cantarolava alguma coisa daqueles rappers dos EUA que tanto gosta. E você estava comigo ao juntar os cacos de vidro do chão, enquanto eu mal conseguia falar entre os soluços e lágrimas. E estava comigo para me ensinar a jogar bola. E a colar nos exames finais. E a beber, e a fumar, e a esconder os hematomas com a maquiagem da mãe.

Você sempre estava, e aqui eu estou sozinho.

Na sua companhia costumava ser mais fácil de lidar com a letargia, tudo o que havia de ruim dentro de mim poderia ser anestesiado com nossas conversas — e as anfetaminas também. Mas não o tenho (e nem a elas), e os momentos de cansaço se tornaram piores.

Faltavam poucos minutos para o início das aulas da manhã quando ainda sofria para tirar meu próprio corpo da cama. Parecia tão pesado, como se as cobertas me puxassem de volta para si. Minhas pálpebras também, quase como se tivessem literalmente coladas. E o esforço para trocar as roupas de dormir pelo uniforme diurno foi tão esgotante que quase me joguei ali mesmo no chão para descansar. A única parte feliz de tudo foi não ter que ver a sra. Foster hoje. Então, quando acabei dormindo durante a aula do sr. Lewis, não resultou em castigo. Deus salve a rainha e Shakespeare!

O professor de inglês não é o tipo de pessoa calorosa e afável. Na verdade, diria que é frio, exigente e distante — mas estranhamente... compreensível...? Eu poderia acabar dormindo em algumas-muitas de suas aulas, e nem ser muito bom com gramática, mas percebi que ele não julga meu comportamento (nem do pessoal que fica desenhando pintos pelas carteiras). Algo raro aqui. Ele apenas não se envolve de forma alguma com ninguém. Cumpre seu horário e então vai embora.

Senti um cutucão entre os ossos da costela e abri os olhos.

— Sam?

Apenas me virei para o lado sem levantar a cabeça da carteira, já sabendo com quem me depararia. Os olhos de Ben corriam de mim para a frente da sala e vice-e-versa.

— Tudo certo? — perguntou. Suas sobrancelhas se arquearam, não sei se preocupado ou desdenhoso. Às vezes é difícil dizer se ele está contra ou a meu favor aqui.

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