parte XXXVI

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Seul, 17 anos atrás

Um dos estados de autocontrole do subconsciente é o momento entre estar acordado e adormecido. Você tem ciência do que é verdade e o que não é, do que é projetado em sua cabeça e do mundo ao seu redor. É um dos poucos momentos que se pode ouvir o mundo e a voz na sua cabeça ao mesmo tempo, sem que nenhum dos dois percebam a sua observação e lhe forcem a parar.

Kahei estava exatamente nesse estado, porém, não como em um estado natural quando já está perto da hora de levantar pela manhã e seu corpo preguiçoso projeta tais ações, tudo o que estava lhe acometendo era efeito dos analgésicos, antibióticos e anestésicos que passavam com facilidade por suas veias. Ela sentia dores em novos locais, esses eram justamente aqueles que as agulhas estavam presas servindo de acesso para os medicamentos.

Ela ouvia beeps de aparelhos cardíacos, oxigênio escapando de aparelhos respiratórios e papéis sendo folheados em pranchetas. Além disso tudo, vozes femininas e entediadas repetiam algumas informações um pouco confusas pelo linguajar médico. Kahei controlou seus olhos para que se mantivessem cerrados enquanto ela se recordava dos últimos acontecimentos que lhe fizeram parar ali, numa cama de hospital, ela já tinha chegado a essa conclusão com facilidade.

Sua família estava morta, isso fez seu peito doer tanto que não conseguiu reprimir uma única lágrima a escorrer de seu olho direito. Ela nunca sentiu uma dor tão forte como aquela em toda a sua vida, restava-lhe aceitar em silêncio para não chamar atenção.

Sua dor no peito era resultado de um tiro e de pontos que repuxavam sua pele para a cicatrização. Ela não se lembrava da face da pessoa que lhe causou dor e lhe fez parar no hospital, também não sabia sobre os benfeitores que não lhe deixaram morrer na estrada, se pudesse, os agradeceria imediatamente por salvarem o que restava de sua vida.

Ela conseguia ver através de suas pálpebras fechadas uma pequena luminosidade, que dividia com certeza com outras pessoas. Talvez estivesse na UTI, é, com certeza ela estava na UTI devido ao seu estado. Kahei tinha muitos machucados e muitas dores que conseguia agora sentir uma por uma por acordar. Infelizmente, abriu seus olhos sem querer, alertando a enfermeira de prontuário na mão que conversava com uma colega. Ela desistiu de se retirar da ala e disse que a encontraria no refeitório assim que verificasse a paciente.

Os olhos ágeis de Kahei se reviraram pela ala; havia dois pacientes a mais dividindo o local, ambos adormecidos e sem acompanhantes. A única enfermeira presente era sorridente e harmoniosa, que rapidamente se aproximou das bolsas de medicamento que se ligavam a Kahei e as ajustou, alisando o seu antebraço por ver seus olhos levemente umedecidos.

- Você acordou antes que eu imaginei, tem um organismo forte. Esse anestésico deixa o paciente desacordado por mais de três horas, você acordou bem antes do previsto - disse a enfermeira ainda sorrindo para Kahei. - Deve estar se perguntando o que aconteceu, certo?! Consegue me ouvir e me entender bem?!

Kahei afirmou com a cabeça sentindo um intenso incômodo da máscara de oxigênio apertar sua face.

- Um casal nos disse que a encontrou na beira da estrada com um sangramento intenso no peito e resolveram lhe trazer ao hospital. Mesmo que a recomendação seja para não mexer no corpo em casos como esse e solicitar uma ambulância para o transporte, eles agiram com rapidez e cuidado. Deixaram o número de telefone caso queira ligar e comunicar o seu estado, soube que ficaram aqui por quase toda a madrugada e só foram embora porque precisavam levar o filho para casa.

Kahei revirou os olhos, mas não por não se importar com a informação e sim, pelos anestésicos incomodarem e dificultarem a compreensão do que era dito.

- Estávamos te esperando acordar para verificar o que aconteceu, você tinha um projétil alojado acima do ventrículo esquerdo do miocárdio, traduzindo para uma linguagem informal, você teve muita sorte dessa bala não perfurar o seu coração, mesmo assim, foi um lugar muito delicado. A cirurgia durou uma hora e trinta minutos, mais ou menos. Ainda não há previsão de alta pela intensidade da cirurgia e também, precisa ficar em observação, seu estado ainda é estável, mas precisamos verificar como o seu corpo reagirá com os medicamentos.

brutal ✦ viseulOnde histórias criam vida. Descubra agora