Retorno à Portugal

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Aquele gato era mesmo estranho. Nas redondezas da Ilha alguns nativos mais antigos diziam que Ale havia sido amaldiçoado. No entanto, ele parecia bem com sua natureza felina.

Claro que se destacava dentre outros animais da floresta, sua capacidade de compreensão era surpreendente. Alejandro não conseguia se preocupar com a presença de tantos portugueses, sentia que partiriam logo. E sabia que era melhor que partissem. Se não fosse Petra e sua voz doce como seu cheiro. 

A caravela estava vazia, sem muitos suprimentos, bagagens, ou armamentos. Por isso, Alejandro desconfiava que não iriam demorar ali. Se encantava pelos cabelos pretos que emolduravam o rosto branco de formato diamante. Tão delicada mas tão corajosa ou necessitada, talvez necessária, entre tantos homens. Ale se questionava enquanto espiava. Alguns homens faziam anotações e desenhos, outros caminhavam pela margem da mata. Os demais ajustavam as velas e o interior do grande barco. Petra recolhia os resíduos de frutas enquanto limpava o chão do convés. 

O Capitão Vitório fez o sinal com as mãos junto a um assobio e todos adentraram a caravela. Petra havia ido ao porão, e os olhos de Alejandro a perderam. Partiram.  

A embarcação sumia no horizonte e Ale escutava a voz de Petra. Como uma onda quebrando e se espalhando pela areia da mente de Alejandro, espumava suavemente a voz feminina e o desejo simples de rever o gato do mato. - Selvático e manso. - Encantadora. Simplesmente encantadora. - Ale sussurrava em resposta.

Continuou sua vida após a partida de Petra, caçando pequenos roedores, correndo pela mata e nadando pelos rios e baías. A moça retornou para rotina de servente enquanto sua família planejava seu casamento. Estava acostumada com a ideia de que teria que se casar. Mesmo que aquele não fosse o seu real desejo.

Se perguntava se algum dia escutaria aquele gato novamente. E não sabia o que esperar da vida pós casamento. Se houvesse alguma chance de Petra retornar àquela específica costa brasileira, ela sabia que seria impossível sem a ajuda do seu prometido. Semanas se passaram enquanto Petra esperava que anunciassem a próxima expedição em que ela seria encarregada de servir os tripulantes além de seu noivo. 

Mas a data do casamento chegou mais rápido. Petra passou a possuir deveres como futura esposa. Após uma cerimônia simples, presentes Petra Braga, sua mãe, seu irmão e sua irmã, bem como o Sr. pai e a Sra. mãe do Capitão Vitório, e um padre, a união foi oficializada. Com aquele bustiê bem apertado em sua cintura abrindo em uma saia longa redonda cheia, o vestido rendado branco marfim era de corte simples e caimento desconfortavelmente esbelto, mais longo por trás. Petra percebeu já ser uma mulher ao colocar aquele anel. Eram dois fios finos de ouro branco torcidos como uma trança delicada. Em pouco tempo completaria 21 anos. O Capitão era um homem de 38 anos, muito charmoso. Também chamava atenção das mulheres por andar sempre elegante. Era o único filho de um nobre senhor português. 

A convivência com Vitório era dentro do esperado. Petra vivia dia após dia, esquivando-se, inventando desculpas, e fugindo da possibilidade de engravidar. Embora tentado, Vitório a respeitava. Estavam casados há pouco mais de um mês quando começaram a dividir a mesma cama. Após algumas noites os carinhos iam aumentando e Petra ficava preocupada. Sabia a realidade de uma jovem portuguesa: tornar-se esposa e depois tornar-se mãe. Cuidar de sua família. Todos os dias. Não era apaixonada pelo Capitão. Também não o desprezava. Trocavam algumas palavras. Todos os dias. Quando Vitório não estava pela região portuária, encarregado com as embarcações, estava diariamente empenhado em aprender a manusear canhão de mão.

Um certo dia, Capitão Vitório anunciou que precisava retornar ao Brasil, mas que Petra não iria. Agora era sua esposa, não precisava mais viajar para servir aos tripulantes, deveria ficar em Portugal e cuidar do seu lar. Petra não reclamava da vida que estava tendo nas últimas semanas. Embora não sentisse um amor profundo pelo homem com quem tinha se casado, ela aceitava seu destino. Ainda assim, insistiu. 

- Por favor, sr. meu capitão, permita-me que te acompanhe. 

Petra sabia ser irresistível. Com a mão repousada em seu ombro, deslizou até seu peitoral. E Vitório com certeza queria sua esposa por perto, à espera do momento de consumar aquele casamento. Assentiu. A jovem se esforçava para disfarçar a felicidade, e fez questão de encontrar com a avó antes de partir. 

-Diga minha filha, está grávida? 
-Não vó, não é isso. Fomos ao Brasil, quando eu ainda era servente na embarcação. E conheci um ser.
-Um ser? um indígena?
-Um animal, vó, vou tentar explicar. Sou casada. Conheci porque mesmo sem nos falarmos ouvi a voz dele com clareza. Foi tão natural… Foi alguém que me ajudou. E eu vim aqui porque não sei como isso pode ser possível. A senhora acredita em mim?
- Minha querida Petra. Eu acredito na força do universo, na magia da natureza. Existem muitas histórias. Se você ouviu, você pode ouvir. Não se culpe por isso.
-Como, vó? Um gato ter uma voz, ter um jeito, tão humano. Não consigo acreditar.
- Não sei, às vezes precisamos viver para entender. Aqui em Portugal pouco sei dessas histórias, mas lá naquelas terras, procure algum nativo, com certeza alguém antigo poderá te explicar. Faça uma boa viagem. 

Ao retornar a casa em que morava com o Capitão, uma combinação de amarelo com madeira por fora, cercada de pinheiros e palmeiras, sentiu-se bem. Curtia o aspecto afastado que o verde trazia. Mesmo com a vista para o mar, o casal habitava uma casa recolhida do movimento portuário. Sentou-se na cadeira de balanço assim que adentrou a varanda da frente. 

-Meu amor, onde você estava? Te procurei por toda casa. Sinto muito por precisar retornar àquelas terras. E fico lisonjeado que queira me acompanhar. Sabe que os rapazes não conseguem navegar tão longe sem o meu suporte, não é mesmo. O capitão brincou. 

-Vitório, senti falta da vovó e fui fazer uma pequena visita. Gosto da sua companhia, claro, mas também estou com saudade de me sentir útil, seria ótimo retornar às minhas atividades. 

-Não precisa mais trabalhar, pensei que quisesse ir para estar perto de mim. E sua avó está bem? 

-Ela está sim, costurando, lendo… Não foi o que quis dizer. Adoro viajar na sua companhia, capitão. E os ingredientes da floresta com certeza são mais atrativos que servir sua tripulação. Levantou as sobrancelhas franzindo a testa com rosto de náuseas. Vou arrumar minha mala.

A gata da Vila de Três Reis Onde histórias criam vida. Descubra agora