O primeiro ano na forja.

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Certo dia, conversando com o Ferreiro perguntei como era o seu mundo e como havia começado o seu ofício. Dos 12 ele sempre foi o mais calado e preferiu contar a sua história me levando através de suas memórias de adolescência.
Seu pai havia falecido aquele ano, agora sozinho ele precisava manter o ofício do pai, um bom ferreiro precisa saber construir tudo, de utensílios domésticos a armas.
"Como todo jovem eu preferia as espadas do que as ferraduras, antes de tudo se tornar o mais puro caos não havia propósito em gastar metal e recursos, mas eu gostava de trabalhar na minha primeira arma, um katar que eu chamei de espada da destruição quando mais velho, sem dúvida o trabalho da minha vida"
Disse ele enquanto me mostrava sua arma, uma lâmina que servia de encaixe no punho e se dividia em 3, no centro logo acima de onde ficaria o dorso da mão, havia uma ranhura para acoplar uma jóia, o metal era incansavelmente aquecido na forja a carvão e seus braços suados e marcados pelas cicatrizes que o metal quente fazia quando se soltava trabalhavam sem parar, com o martelo e a bigorna, o metal era batido, alargado, os olhos do ferreiro tinham a cor do metal fervente, o amarelo alaranjado, brilhante e esperto, seu rosto parecia feliz enquanto trabalhava e dava forma aquele pedaço de metal, as fagulhas voam enquanto o barulho do bater incessante do martelo criava um som ritmado e pesado.
Porém seus dias não eram apenas de forjar o seu projeto, também havia a necessidade de forjar arreios, ferraduras, pregos e toda a infinidade de utilitários.
"Minha vila, a terra das sombras, ficava em um território isolado dos demais dentro do reino, nós somos vizinhos dos lobisomens que habitam a névoa e do povo do deserto, os nômades que me ensinaram sobre aquele modelo de arma, uma quebra espada que também pode servir como um escudo pequeno, os lobos por sua vez me ensinaram como era importante manter algumas armas ocultas, já que estes não gostavam de confusão" Eu segui o olhando atônito enquanto ele me guiava pelo redemoinho das próprias lembranças.
"Existe o esteriotipo de que lugares sombrios são ruins, que lobos são arruaceiros e que o deserto é um lugar inabitável e eu temo dizer que nem sempre foi assim, o povo da névoa era pacífico, dedicado a criar medicamentos, já que seu instinto lhes dizia o que era bom para consumo e o que não era, o povo do deserto por sua vez gostava de comercializar tudo, tinham absurdo interesse pelas culturas do continente e mantinham consigo o conhecimento de fábulas, lendas e métodos de todos os lugares por onde passavam"
E a terra das sombras?
"Eu já chego nesse ponto, não me apresse."
Sua voz desapareceu por alguns segundos enquanto ele refletia sobre o passado, sua memória parecia obscurecida por algum tipo de trauma, ao mesmo tempo que eu via uma vila simples e iluminava, também percebia as chamas que aos poucos tomavam conta do cenário.
"Minha vila era pacífica, a terra das sombras não é rica em nada além de metal, suas minas e cavernas levavam segredos de gerações e as vidas de milhares de meus antepassados através dos séculos, a forja era a arte da minha família, foi do meu pai, e do pai dele. A terra em volta era escura, como pó de ferro, o ar sempre pesado, mas com o céu azul, um azul profundo que me lembrava os olhos do lobo Branco, pai do primeiro guardião"
Não se desvie, os lobos virão em outra oportunidade.
"Sim, é verdade. Mas não posso evitar de sorrir lembrando dos dois"
Tudo bem, me conte mais sobre sua Terra
"Aquele lugar era minha casa, o povo era gentil, mas a vila não era muito grande, haviam poucos humanos naquele território, como nada sobrevivia ali, tudo o que havia de negativo nos outros lugares habitavam em torno da montanha. Minha vila era um pouco mais afastada e contávamos com a lenda do grande dragão negro para nos proteger e guardar.
Diziam os mais velhos que a caverna próxima continha os restos mortais de um grande dragão, ao contrário dos dragões comuns, aquele era sábio e conseguia se comunicar com outras raças, ele havia habitado aquelas terras a muito tempo e depois de um terrível combate entre as raças foi obrigado a fugir do seu lar, voltando anos depois e adormecendo ali, ninguém poderia entrar na caverna ou perturbaria o sono do dragão."
Assim se passou o primeiro ano do Ferreiro, o metal sendo forjado todos os dias, para que sempre houvesse o que vender nas lojas do vilarejo, o povo muito pobre em recursos vendia o que era produzido para quem passasse por ali. O lugar era mantido pelo ferro, porém aquela terra guardava um segredo maligno, que custou a vida de milhares de criaturas, mágicas e não mágicas
"Não existe isso de não mágico"
Eu preciso continuar minha narrativa, o público espera identificação.
"Mas não existe não mágico, vocês humanos tem a habilidade de imaginar, isso é mágico por si só, moldam seus pensamentos e criam coisas o tempo todo, pra mim isso também é magia"

Ok senhor inspiração, você não é mais general da sua terra, não preciso de discursos motivacionais no meu livro.

"Isso me entristece, mas como solicitado, continuarei a história.
O território em volta do nosso vilarejo era povoado por orcs, goblins, banchees, vampiros sem consciência e outras coisas que não consigo nomear, criaturas do tamanho de humanos, com a pele negra e escamosa, dura como aço, só é possível o acesso as outras terras pelas estradas que passavam pela nossa vila, já que segundo a lenda, foi por aquele caminho que o dragão passou e qualquer coisa tinha medo de invadir seu território"

Claro, dragões são grandes, bravos e cospem fogo, até eu teria medo.

"Dragões são sábios e alguns conseguiam falar a língua humana, mas ao longo da minha vida conheci poucos dispostos a falar com humanos."

E eu sei que havia uma família que você era apegado, mas fala muito pouco deles.

"Não espere romance, eram apenas meus amigos."
Houve uma pausa enquanto o homem cheio de cicatrizes relembrava, com um sorriso triste.

"Depois da partida do meu pai, eu não tinha tempo de forjar e vender o que criava. Uma família de mercadores do deserto que havia se instalado ali me ajudava com a parte chata, eu detesto vender." Seu sorriso se tornou um pouco menos melancólico enquanto prosseguia. "De todos ali a filha era a que mais me interessava, seus cabelos eram castanho claro e seu sorriso era constante, mesmo quando a guerra encontrou minha casa era não deixou de sorrir, do seu primeiro dia de vida ao seu último dia, seus olhos e seu sorriso gentil me ajudaram a trabalhar."

As cenas de destruição voltaram a passar na cabeça do homem, enquanto ele narrava, suas mãos grossas pelo trabalho passaram pelos seus cabelos, o loiro escuro com alguns fios acobreados tomavam sua cabeça e desciam até metade das costas. Seus olhos pareciam opacos enquanto ele lembrava, totalmente perdido, as chamas da guerra pareciam ter levado tudo o que havia sido construído naquele primeiro ano.

"Me lembro de algo que não é tão objetivo, posso contar?"

Claro, a história é sua.

"Eu gostava de passar as manhãs numa casa de bolos, uma padaria, é assim que se chama?" Sim é assim. "Eu passava, comprava o pão que iria me manter o resto do dia, as vezes um pouco de carne seca e as vezes comprava um pacote de biscoitos para ela, gostava de ver o sorriso dela enquanto se entupia de açúcar"

Você não gosta de doces, é algo do povo do deserto então, gostar de doces.
"Eles criam frutas e outros alimentos cristalizados para sobreviver mais tempo, então creio que sim"

Sua vida me pareceu bem simplória.

"Eu nem sempre usei a armadura negra que visto hoje e tinha menos cicatrizes"

E então, o que acontece a seguir?

Silêncio.

O espírito do Ferreiro adormeceu.

Haverá um próximo capítulo em breve

(Recomendo que escutem essa música, foi o que me fez querer contar essa história)

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