PROLOGO

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Estantes de livros.

A lombada do livro azul está rente ao meu rosto. Levanto a mão para tocar o sol entalhado. Assustada, retenho o braço ao ouvir o estrépito. A porta foi aberta sem cerimônia, e é fechada bruscamente pelo mesmo homem. Alto, moreno, barba por fazer. Teria um rosto simpático se não fosse pela ruga no meio da testa e os olhos crepitando de ódio.

— Precisava me humilhar tanto essa noite, Frezo? — Suas vestes estão manchadas de algum líquido preto, roupas engomadas, camisa sob um paletó dourado, a gravata amarrada num nó sofisticado, enquanto na cintura pendia uma espada na bainha.

Outro rapaz está encostado em uma das estantes de livros, não há o mesmo glamour em suas roupas, são meramente formais. Ele caminha na direção onde a luz é mais forte com uma expressão taciturna no rosto, a pele alva é idêntica a minha; faz parecer até mais sombrio.

— Tenho uma proposta. — Ele revela sem rodeios.

— Preste atenção, estou cansado de suas brincadeiras. O trono é meu! Não importa o que você faça ou deixe de fazer — O homem irritado o confronta.

Com a boca num sorriso malicioso, aquele que antes se escondera nas sombras tira uma mecha do cabelo loiro da testa.

— Trocaria o trono por uma esposa que o ame, irmão? — A última palavra foi dita com tanto desgosto que me aproximo mais para ver a semelhança entre eles.

— Daria sua noiva para mim? — Os olhos do moreno pareceram brilhar por um leve momento.

— Pelo trono de Solarium, Islevan. — O rapaz sombrio afirma sorrindo entre os dentes.

E é então, que entendo onde estou: dentro de um sonho. A palavra Solarium, se tornou até rotineira nesses três dias dentro de uma nave, entretanto o planeta ainda não se tornou real aos meus olhos.

— Como pode ser tão ganancioso? Lutou tanto para tirar Meletriz de mim, e agora está trocando-a por... Poder! — Islevan se retrai, sua mão direita cai sobre o punho da espada.

— Se não aceitar, também estará fazendo o mesmo. — discute o irmão.

— Não posso entregar os meus steates, Frezo. Sabe que só sou o Senhorio desta geração devido ao destino ter entregue a mim. — A voz dele está trêmula, como se tivesse medo de algo.

— Doukroum. Eles me darão todos os steates. — Frezo corta as desculpas.

Os dois se encaram por poucos segundos, e logo vem a resposta.

— Não. — Islevan diz decidido. — Case com Meletriz, o trono é meu.

Assim como os dois rapazes apareceram de repente, eles sumiram da mesma forma. A sala cheia de livros ficou escura e vazia, com exceção de mim. Ouço algo sendo quebrado: a trinca. Vagueio até encontrar a porta principal sendo aberta. De lá, saem duas pessoas vestidas de preto. Reconheço os olhos obstinados de Frezo, que acabara de brigar com o irmão neste mesmo cômodo.

Junto dele, está alguém um pouco mais velho, com um bigode estranho em cima dos lábios finos.

— Senhor, tem certeza que é necessário roubar este livro? — pergunta desengonçado com seu quadril grande e atrapalhado.

— Já lhe disse Jaffar! Se não posso governar Solarium, eu mesmo vou criar meu planeta. Não vou me ajoelhar para Islevan. Nunca. — Frezo sussurra ao caminhar por entre as estantes.

— Mas senhor! Por que não tenta seguir as dicas entalhadas no castelo? — Seu parceiro pergunta, está vermelho e o suor escorre por entre a testa.

— Ninguém conseguiu achar nada por aqueles versus, Jaffar. Porém, existe um livro escrito por Bardô Solarium escondido aqui no castelo. — Frezo sobe e desce através de uma escada de madeira para ver os títulos de cada livro, para ter certeza que não passou nenhum despercebido.

— Procuramos hoje o dia inteiro e não achamos nada — Jaffar resmunga baixinho.

Eles passam por todas as estantes, quando finalmente chegam ao corredor em que estou parada, apenas ouvindo a conversa alheia. Mantenho-me ereta. Sempre acredito que há uma barreira invisível ao meu redor, só que dessa vez, foi diferente.

— Achei!

Os dois estão ao meu lado, fixados naquele livro de capa azul que eu já conheço. Afasto-me o suficiente para Frezo pegá-lo da estante e sair por entre as portas que arrombou junto com seu parceiro.

O lugar permanece em silêncio por apenas alguns segundos. A Sala de Livros se ilumina, e dessa vez surge dentre a porta principal um homem barbudo, com roupas formais e uma coroa na cabeça, senta-se em um dos bancos dourados com uma visível preocupação. Carrega um livro junto de si. O mesmo que foi removido da biblioteca há alguns minutos atrás.

Ele retira um papel de dentro dele.

Com receio, ando com a mão estendida pela sala, pronta caso haja alguma parede barrando a minha passagem, mas nada impede. Consigo olhar por sobre o ombro do homem barbudo.

Sr. Widbord VII,

Tenho guardado este livro há um tempo, creio que ele resolve muitos dos mistérios que até hoje estão acobertados por Bardô Solarium. Acredito que estará seguro em suas mãos.

Minhas condolências,

Agora entendo de quem é a assinatura daquela carta.

Frezo Widbord.

Ouço um estalo na minha cabeça. O que quer que seja esses sonhos, estão me dando explicações. O livro de capa azul que roubei da OPRA junto com Hannagan, meu Guardião já vagou pelas mãos de Frezo Widbord, que pelo jeito não conseguiu concluir seu plano de criar um novo planeta para governar, e o bilhete escrito me diz que ele conhece o potencial daquele livro. Mas a questão é: por que eu não encontro nada nele?

A única coisa que posso concluir dessa carta é que eu não sei decifrar um livro de catalogação.

— Senhorio, — Um rapaz de pouca idade adentra o salão para conversar com o rei barbudo — o que vai fazer? Sua filha desapareceu, as pessoas querem respostas!

Ele nada responde, os olhos estão fixos na carta.

— Diga que ela morreu. Faremos um Baile Fúnebre em sua homenagem.

— Mas Senhorio, ela não morreu. Ordanele fugiu!

Sem mais nenhuma palavra o Senhorio sai caminhando entre as estantes e guarda cuidadosamente aquele livro de capa azul com título desconhecido.

Os dois personagens sumiram, assim como os outros. Este é um sonho estranho. Não é a primeira vez que minha imaginação recria Solarium, mas é a primeira onde ocorre uma série de fatos envoltos de um único objeto.

Três figuras conhecidas surgem por aquela porta que leva a Sala de Livros. Uma mulher de cintura fina e cabelos longos, um garoto de não mais que sete anos de idade com uma tromba no lugar de um nariz e por último o fortão de ombros largos e pele viscosa. O Quórum de averiguadores. Eles me perseguiram na Terra.

— Senhorio Widbord, está fazendo muitas dívidas com a OPRA recentemente. — A voz da moça de cintura fina é instigante — Não seria mais fácil vender esse planeta?

— Levem, levem o que quiser — É só isso que o Senhorio barbudo diz, o mesmo tom de desdém que fez ao dizer o falecimento da filha — mesmo ela não estando morta.

Caminho ao lado do menino com sua tromba de elefante. Sei onde está indo e o que procura. Chegamos à estante onde está localizado. Ele pega o livro com as duas mãos e exibe um sorriso ganancioso. Estendo meus braços numa tentativa de impedir, mas o menino se vira e sai junto com seu Quórum. E antes que passem pela porta, corro. Apresso-me em segui-los.

O teto não é branco, é dourado. E mesmo assim me parece apavorante.

Arqueio para frente enquanto agarro os lençóis com minhas mãos suadas e conto regressivamente. Reabro os olhos, e viro-me para a mesa de cabeceira.

O livro com capa azul ainda está lá.


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Crônicas dos Snay 2: Ilhas de ThoronOnde histórias criam vida. Descubra agora