Crônicas dos Snay 2: Ilhas de Thoron

3. Ilha maldita

— Por quê? Por que não usou seu steate? — pergunto pela milésima vez para Ricard. — Por que deixou que nos separassem?

Estamos engaiolados a cinquenta metros do chão. Ankel, DT, Ricard e eu. Foi pra cá que aqueles touros nos trouxeram, uma gaiola de passarinho gigante. O lugar é frio, o chão é de cera, e está bem abaixo de nossas cabeças. Sem meu Comunicador, sei que Hannagan está entrando em desespero, acho que se arrependeu de ter trocado por transboluns.

— Ele já disse Annie, — Ankel coloca a mão no meu ombro, tentando em vão me acalmar — é difícil controlar os steates.

Steates são dons que são atribuídos a cada solariano. Ricard é telepata, consegue entrar na mente das pessoas, Hannagan usa a invisibilidade e eu posso voar. Sei que não somos imunes, temos limitações. Adhara, minha irmã possui uma super velocidade nos pés, porém, isso não impede que ela sinta-se cansada. Assim como Ankel consegue controlar o fogo, tem maestria quando ele já está presente, mas exige uma força vital para que seja criado a partir do ar.

Ricard permanece sentado em um canto cabisbaixo. Sei que não deveria culpá-lo. Tentar administrar tantas mentes de uma vez deve ser difícil, mas ajudar na descida de todo mundo também foi, e eu consegui. DT deixou escapar sua satisfação de estar com Ankel, ele diz que não iria querer morrer por um erro banal como esse. Nega, segundos depois, dizendo que não foi culpa de Hannagan, e complementa, fará o possível para me proteger também, mas precisa colocar Ankel em primeiro lugar.

Claro, existe mais essa ainda. Os Guardiões dependem exclusivamente de seu protegido. Se eu for morta, o juramento de Hannagan o compele a ter o mesmo destino. Entretanto, isso é uma mão única, se meu Guardião morrer, estarei sozinha.

Revisto o pequeno espaço mais uma vez, o fecho do cadeado é complicado demais, várias engrenagens não permitem que eu as levite. Tento balançar essa bugiganga mais de uma vez; peço para que Ankel crie lavas que possam derreter as grades, ela responde que o material provavelmente seja bronze e precisaria de muita temperatura. Pela minha insistência ela tenta e a gaiola, por sua vez, só aquece o ambiente em que estamos.

— Eu disse, Annie. Se as labaredas estivessem próximas, eu conseguiria controlá-las e tirar a gente daqui.

Fecho os olhos. Cogito várias ideias na minha cabeça, todas parecem inúteis nesse momento; Ricard se recusa a se levantar, diz que está com dor de cabeça. Ankel reclama do metal que estamos envoltos, e DT me doou um Comunicador que não funciona abaixo da superfície — ou pior, não funciona nesse planeta. Sento no chão próximo a fechadura, encarando a face lisa do Comunicador, e novamente penso em por que Hannagan quis levar além da arma, trans...

— Uma transbolum, DT? Você tem? — O pensamento veio tão rápido que a frase saí antes que eu possa ter tempo de formular a pergunta.

— Não tenho nenhuma disponível, Annie.

Transboluns são excelentes meios de transporte, normalmente elas têm um destino já fixo e isso é meio ruim agora. Outras vezes, são disponíveis e podemos viajar para onde quisermos por meio de portais. É preciso conhecer o local que se está indo e outras coisas mais . Só que estou meio desesperada no momento.

Suspiro pesadamente e volto minha atenção para fechadura. Visualizo a trinca e as engrenagens pequenas que não permitem que eu as levante. Uma luz acende-se em todo o galpão. Reabro os olhos assustada, pois o lugar estivera envolto de sombras e a única iluminação que tínhamos era em cima da nossa gaiola e outros pontos distantes de luzes. Com essa nova luminosidade é possível enxergar o que estava na escuridão.

Mais gaiolas idênticas as nossas estão penduradas acima do chão. Algumas delas começam a fazer barulhos roucos; levanto do chão e reparo ao meu redor. Dentro destas, estão touros de pele amarronzada, — não transportam escudo no peitoral —, carregam pedaços de metal no nariz, mãos, orelhas e dedos todos com formatos grandes e pendurados transversalmente. Alguns deles têm chifres altos e outros bufam irritados. Gaiolas começam a ser sacudidas à nossa direita, vários grunhidos e vozes abafadas vêm de lá, estão vindo.