Capítulo 34

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– Você vai ficar bem, não vai?
– Quanto drama, Dean. – Eu reclamei e me aproximei dele, deixando que ele me envolvesse com seus braços e me puxasse para si, dando um beijo no topo da minha cabeça. – Até parece que é a primeira vez que faço uma caçada sem você.
– Faz tanto tempo que parece que nunca aconteceu.
– Três meses!
– O quê?
– Faz três meses que eu cacei sem você. E quem vê mal acredita que você não tinha olhos pra mim antes.
– Quem está sendo dramática agora?
– Allison, vamos! – Meu pai chamou.
Nós dois rimos e nos beijamos mais uma vez.
– Vai mandando notícias e não esquece de avisar quando pousar.
– Fica tranquilo, Dean, não é como se eu estivesse indo sozinha.
– Só ficaria tranquilo se fosse eu te protegendo.
– Tá tirando meu pai como um nada? – Beijei sua boca uma última vez. – Vou contar pra ele.
– Não vai, não! – Ele gritou enquanto eu me afastava.
Dei tchau para Sam com a mão e corri para o carro. A viagem até o aeroporto levaria mais de três horas e eu, meu pai, meu tio e Austin estávamos desconfortáveis com o que poderia acontecer com aquela decisão. A história essa simples: estávamos indo para a Inglaterra para visitar algumas fazendas criadoras de gado Angus porque estávamos querendo investir em gado de corte para complementar a renda. Eu e meu pai éramos os donos da fazenda, Austin era o nosso ajudante e especialista e meu tio era o velho que não podia ficar sozinho. Ele, em particular, não gostou mundo da sua parte na mentira, mas não tinha muito o que fazer a respeito. Envolver outros caçadores também seria um erro, a informação poderia parar rapidamente nas mãos erradas e teríamos um plano completamente arruinado.
O voo da United Airlines era o mais barato e com menor tempo de parada – apenas uma, em Nova Iorque, para troca de aeronave. Três horas até lá e, depois, sete horas para Londres. Eu não tinha o mínimo otimismo referente àquilo, mas havia a necessidade de ter aquela missão concluída. E já dizia o ditado: se quer bem feito, faça você mesmo. Só seria segredo se continuasse entre a gente.
Eu dormi durante boa parte do voo, na verdade, contrariando todo o meu nervosismo. Fui acordada com o alerta para encaixar os cintos de segurança, já avisando do eminente pouso no Heathrow. Comprei um celular descartável imediatamente e fiz uma ligação a cobrar para casa, o que poderia facilmente explicar no caso de dar errado e irmos parar na mão da polícia.
– Preciso ser rápida. – Disse quando Dean atendeu, me colocando propositalmente próxima a um dos seguranças espalhados pelo saguão do aeroporto e falando alto. – Chegamos em Londres. Meu pai tá indo ver como vai ser pra alugar os carros, então não sei quanto tempo vamos levar por aqui ainda.
– Você tá bem?
– Claro que sim. Por que não estaria? – Sorri. – Meu tio não tá muito confortável com tudo ainda. Ele não para de reclamar que queria estar em casa.
– É de se esperar que ele seja assim.
– Um belo velho rabugento... Mas eu vou ajudar meu pai, não sei o quanto de paciência ele ainda tem depois que a aeromoça derrubou refrigerante nele. Se precisar falar com algum de nós, liga pra esse número. Pode ligar do telefone de casa, meu pai disse que vai custear o que for necessário.
– Quando você volta?
– Se tudo correr certo nas fazendas, meu pai ainda vai ter que ver algo com alguns órgãos governamentais aqui referente à exportação do sêmen. – Disse bem alto, me sentindo uma completa idiota, percebendo que finalmente tinha chamado a atenção do segurança. – Eu li alguma coisa sobre a legislação pecuária britânica, mas não sou uma especialista.
– Me liga se acontecer alguma coisa, vou ficar sempre por perto do telefone.
– Pode deixar. E mantenha meus cavalos vivos, por favor.
– Não vou chegar nem perto daquele estábulo.
– Vai sim. – Resmunguei. – Até então, estamos programados para voltar em uma semana. Se tudo der certo, vamos tentar adiantar a volta. Eu te mantenho informado.
– Espero mesmo. Amo você.
Eu desliguei sem responder, foi quando me conscientizei das palavras que tinha acabado de escutar. Ciente de que não podia demonstrar nenhuma reação estranha, respirei fundo de olhos fechados, tentando me tranquilizar. Precisava de uma desculpa para aquilo.
– Com licença, – Eu me dirigi ao segurança. – onde fica a farmácia mais próxima?
O segurança abriu um sorriso minimamente educado para mim.
– Há uma ao lado do ambulatório. É só seguir as placas.
– Obrigada. – Sorri em resposta e deixei o lugar.
Pronto, ele lembraria de mim e das minhas palavras caso algo desse errado e eu o sugerisse como testemunha a meu favor para as forças policiais. A viagem até Grays não foi muito longa. Levou cinco minutos a menos do que o previsto pelo GPS. Não foi surpresa que encontrássemos um hotel da rede Ibis por lá, e foi exatamente onde ficamos. Só de entrar no saguão do hotel, percebi a grande diferença entre o estabelecimento e os lugares onde nós costumávamos ficar. Tudo parecia extremamente luxuoso para mim, muito embora o hotel tivesse sido um dos mais baratos na minha lista de procura quando começamos a organizar brevemente o plano.
Meu pai fechou os três quartos – um para mim, um para ele e meu tio e um para Austin – e subimos. Fiquei em um andar separado, o que não deixou ninguém feliz, mas seria bom ter um pouco de privacidade, mesmo que mínima. A cama parecia confortável, os lençóis eram os primeiros totalmente brancos que eu via fora de casa, tinha uma mesa de trabalho decente com cadeira giratória onde eu poderia dormir, a televisão era de plasma. Caralho, um lugar para guardar as roupas! O banheiro... Ah, o banheiro! Por Deus, eu poderia ficar ali para sempre. Finalmente, não tinha nojo de nenhuma superfície. Parecia o paraíso, até as batidas na porta.
– Quem é?
– Serviço de quarto, senhorita.
Oi?!
– Eu não pedi nada.
– Foi um senhor que ligou da América e fez o pedido. – A voz do outro lado da porta afirmou. – Se a senhorita não desejar, posso devolver o pedido e não será descontado nada do seu cartão de crédito.
Dei uma espiada pelo olho mágico – olho mágico, aquilo era surreal! – e me pareceu tudo certo. Ainda com medo, destranquei a porta.
– O senhor se identificou como caseiro de sua propriedade. Disse para lhe servirmos lasanha com suco de manga, da fruta. Como foi informado que não tínhamos, ele pediu maracujá.
Suspirei mais tranquila. Aquilo só podia ser coisa dele. Deixei que o funcionário adentrasse o quarto e depositasse o pedido na mesa de trabalho. Puxei uma nota de cinco libras e entreguei ao rapaz. Não dávamos gorjeta nos Estados Unidos porque não tínhamos motivo para tal. Fazendo isso, eu me sentia até mais fina. Sorri ao levantar a cloche e observar o prato. Então me sentei, levando o celular comigo.
– Como você sabia que eu estava morrendo de fome? – Sussurrei.
– Você tá sempre morrendo de fome.
– Idiota...
– O prato tá bom?
– Me dá um segundo. – Retirei um pedaço e coloquei na boca, levando um tempo para mastigar. – Não é tão boa quanto a minha, mas dá pro gasto.
– Você sabe qual foi a minha atenção.
– Claro que sei. – Disse e peguei outra garfada. – Nós vamos sair cedo amanhã. A primeira parada é em uma fazenda. Depois, vamos passar na propriedade do velho.
– O que vocês vão usar como desculpa?
– Vou assumir o papel de interessada na história da área.
– As histórias não estão casando, na minha opinião.
– E que escolha temos?
Podia ouvir o sorriso em seus lábios. Forçado, mas ainda sabia que estava lá. Terminei meu prato e, satisfeita, gastei um bom tempo no banho. A noite foi tranquila quando comparada à minha ansiedade. Cheguei a pensar que não conseguiria dormir, ainda mais com o jet lag. Decidimos, pelo bem maior, ignorar o horário local. Configurei o despertador para as seis horas da manhã em casa, meio dia ali. O verão na Europa estava de matar. Nós seguimos direto para o almoço servido do hotel, sem muito hesitar. Comemos rápido e, mais rápido ainda, deixamos o hotel rumo aos primeiros passos da nossa missão.
A fazenda Rainbow era muito mais do que o nome transparecia. As dez mil cabeças de gado eram bem mais agressivas que a bonita fachada do portão. Meu pai, caçador à parte, também estava maravilhado. Enquanto ele conversava animadamente com o gerente da fazenda, eu praticamente corria ao estábulo. Criavam Andaluz, uma das minhas raças favoritas. Os animais eram gigantes e meus olhos estavam, com certeza, brilhando de pura satisfação.
– Você tá com os americanos? – Um rapaz, que eu não vi se aproximar, perguntou.
Eu me recompus rapidamente do susto enquanto o homem alto se aproximava.
– Sim, estou. – Respondi. – São belos animais os que vocês têm aqui.
– Eles são mesmo. – O homem mexeu no animal para o qual eu dava a minha atenção, oferecendo a mão para mim logo em seguida. – Prazer, Taylor.
– Allison.
– Você monta? – Ele perguntou, apontando para o animal.
– Criamos Quarto de Milha.
– São bonitos também, têm o temperamento um pouco parecido. Ainda acho a marcha dos nossos melhor. Aceita?
Não vi quando Taylor pegou o material para selar o cavalo, mas me coloquei em prontidão, ansiosa para aquela experiência. Meu pai viu de longe quando eu deixei o estábulo e riu da minha cara de satisfeita. O que eu não esperava era que, durante a cavalgada, Taylor me desse de bandeja tudo o que eu queria a respeito da minha próxima visita. Não fazia ideia de que a fazenda do velho Paul McConney fazia limite cerca a cerca com a Rainbow.
– A porteira ali é a divisão. Os homens que fazem a nossa segurança aqui à noite dizem que costumam ver fantasmas por ali. Papo de maluco, só porque teve um cemitério particular ali faz algumas décadas.
– Sério? – Perguntei, fingindo desinteresse e incredulidade. – Vocês também têm desses por aqui?
– Desses o quê?
– Funcionários que acreditam em fantasmas.
– Você não acredita?
Eu olhava fixa para além da cerca, quase que alheia a todo o resto. Disfarçando, busquei o EMF no bolso largo da bata que eu usava. Positivo. Merda. Eu tinha outro problema, tirar Taylor da minha cola. Minha mente era boa em tramar desculpas prontas rapidamente, mas eu parecia não estar em pleno funcionamento aquele dia.
– Allison?!
– Sim?
– Aconteceu alguma coisa?
Tic tac, Allison.
– Aqui parece muito com a parte da nossa fazenda onde enterramos meus avós. – Menti, sentindo um alívio interno por ter inventado a narrativa perfeita, finalmente, na minha cabeça.
– Sinto muito por isso. – Taylor disse, e eu podia imaginar Dean bufando de raiva por ciúmes quando eu lhe contasse aquela história. – Você... Você acha melhor retornarmos?
– Se importaria de me deixar sozinha por uns instantes? – Pedi. – Desculpa se parecer um abuso, mas...
– Não, claro! Você tem certeza de que saberá voltar sozinha?
– Certeza absoluta.
– Tire seu tempo então. E, mais uma vez, sinto muito pelos seus avós.
Fingi um sorriso em agradecimento. Assisti enquanto ele se afastava com seu cavalo e, tocando o meu a passos lentos, me aproximei da cerca. Taylor já estava fora do meu campo de vista quando me aproximei. Prendi o cavalo na tábua de madeira que separava as propriedades e pulei, não sem antes dar uma nova checada no entorno. O EMF, que deixei ligado, estava maluco. Busquei o telefone descartável e o maldito estava sem sinal. Nervosa, continuei avançando, sabendo que estava fazendo o mais arriscado possível ao investir naquilo sem reforço.
Lápides estavam espalhadas no que, provavelmente, tivera sido um gramado em seu pleno funcionamento. A área estava tomada por árvores de copas não tão altas mas frondosas, fazendo a sombra incomodar um tanto a minha vista na busca pelos nomes escritos nas lápides. E então eu achei. Achei a maldita lápide que procurava. Observei mais em volta, tendo certeza do que estava fazendo. Surpreendentemente, meu tio se aproximava ao longe e montado em um cavalo, para a minha dupla surpresa. Trazendo pás!
– Como você soube?
– O moleque chegou lá com uma história bem estranha. – Ele me deu as pás antes de descer. – Não acredito que você me fez andar em um desses.
– De nada. Vamos logo.
– Eu to velho, Allison.
– Tio, não tem tempo.
Levamos vinte minutos. Vinte malditos minutos. Assim que encontramos o caixão, eu tratei de começar a quebrar a madeira. Assim que cedeu, eu enfiei a mão e busquei o primeiro osso que encontrei: uma falange. Não precisávamos de mais, certo? Nem tanto. Eu estava pronta para ir embora quando meu tio deu outra porrada com a pá e pegou um rádio.
– Precisava mesmo disso?
– Eu que digo pra irmos logo agora.
– Onde o senhor pegou as pás?
– Deixe aí, ninguém viu.
Os cavalos voltaram correndo, seguindo nossos comandos. Desci do cavalo com habilidade e ajudei meio tio. Enfiei o maldito rádio por dentro da calça, dando uso à blusa propositalmente larga demais. Não tinha tempo para nojo, precisávamos correr.
– Senhor Singer! – Taylor apareceu correndo. – Abraham não está com vocês?
– Achei que ele estava aqui.
– Austin disse que ele iria até vocês.
– Mas ele não foi.
– Pai! – Eu gritei imediatamente. – Pai!
– Taylor! – Outro rapaz vinha correndo na nossa direção. – Os seguranças não estão encontrando o homem em nenhum local.
– Merda.
Eu senti o ar me faltar, parecia prever a merda. A vontade era de vomitar.
– Pai! – Gritei de novo.
– Um dos carros em que vocês vieram sumiu. – Bryan, o gerente, se aproximou.
– Allison, volta com o outro carro para o hotel. Às vezes, ele foi embora por algum problema e esqueceu de avisar.
– Tio, eu...
– Faz o que eu to falando. Nós aguardamos aqui.
Eu queria chorar, sabia que meu pai não iria embora sozinho por nada. Mas corri. Sabia que precisava correr contra o tempo. Meu tio me acompanhou a passos largos até o carro e me parou antes que eu entrasse.
– Vai embora. – Ele ordenou.
– O quê?
– Pega o próximo voo para os Estados Unidos. Diz que sua mãe morreu.
– Mas ela não...
– Foi trote, Allison, agora vai embora e faz o que tem que ser feito.
Mais de duas décadas e meia caçando ao lado do meu tio. Foi a primeira vez em que vi o pânico tomar conta do seu olhar.

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