A Guerreira - parte 2

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Já estava claro quando eu acordei com o cheiro de comida. Na verdade, comida é um termo bem nobre para ração seca com uma pasta de frutinnhas esquisitas e azedas que aromatizavam o lugar ao redor do acampamento. Eu nem havia me dado conta de que adormeci durante a vigília, algo bem perigoso, me repreendi fortemente pela irresponsabilidade, mas a suposta comida estava me atraindo, e minha cama de neve foi bem desconfortável, talvez isso fosse punição o suficiente, seria um dia longo de dores musculares. Eu ainda me preocupava bastante com o estado da Laysla, ela passou por coisas bem difíceis nos últimos dias, e se não fosse por mim na última noite, algo ainda pior. No entanto, eu a vi chorar mais uma vez pela mesma carta que ela lê todos os dias desde que a recebeu. Talvez ela ainda espere que algo de novo apareça na carta, eu também esperaria, mas a notícia que recebi foi ainda pior.

A manhã silenciosa foi breve, abandonamos os corpos dos salteadores onde estavam e partimos depois de levantar o acampamento. Seria mais um dia de viagem contínua, espero apenas que não haja encontros desfavoráveis no caminho. Montada em meu cavalo e liderando a viagem, novamente fui levada a pensar sobre as mesmas coisas que estava evitando nos últimos dias, especialmente aqueles que esfriavam meu coração. Eu entendo minha amiga. Nós levamos tanto tempo para encontrar alguém com quem compartilhar algum sentimento mútuo, tanto tempo para poder confiar nossos pensamentos, sentimentos e corpos, para então sermos traídas de formas inconcebíveis. Acho que por ela ter ficado tanto tempo esperando para vê-lo novamente, afinal foram semanas, meses atrás que ele partiu com a promessa de retornar. Lembro-me de quando ela me falou com alegria sobre a noite que tiveram e leve e despreocupada preocupação que ela teve com a possível gravidez. Ela estava feliz com ele, muito feliz. Lembro-me até do momento em que ela negou sua própria família para ficar com ele, sem ele saber é claro. Kalil, o irmão da Laysla, que ele descanse em paz, exigiu que ela se casa-se com outro olfe de importância em Listandyr, mas minha amiga foi firme na sua decisão de permanecer com Calen, ela foi corajosa e destemida, naquele momento eu a vi como um ídolo, um exemplo de mulher a ser seguido. E foi na relação deles que eu busquei algo similar e, por algum tempo, achei ter encontrado.

No entanto, neste momento eu tenho assuntos mais importantes a tratar. Preciso estar bem atenta ao arredores, afinal estamos em território hostil. Nem eu e nem ela somos tão bem-vindas aqui quanto gostaríamos. Eu ainda estou para entender como funciona exatamente esse reinos nórdicos, são na verdade, três reinos distintos que se dizem uma grande união. No entanto, eles brigam entre si, especialmente sobre política. Além do que, há coisas que em um reino são permitidas que em outras são proibidas. E, agora, há uma guerra acontecendo. O califado olfe vindo do mar ao Leste e sitiando a cidade de Aadar; o reino élfico descendo o rio Helenio e atacando a outra capital nórdica de Lamary.

Os elfos... penso como se eu não tivesse sido parte disso tudo há poucos meses. Embora eu não tenha nada a ver com essa invasão ao reino de Lamary, sinto como se eu estivesse inteiramente ligada a esse conflito. Elfos estão morrendo, humanos estão morrendo. E para quê? Elfos que podem ser descentes de Vaëneria, elfos que podem estar ligados a mim e à minha família. A cada dia que se passa posso estar perdendo mais e mais do que é meu por direito. Ah, Rhagzor, onde está Evya nisso tudo? Minha amiga que foi sequestrada há semanas... estamos sem notícias dela há tanto tempo. O único que poderia se comunicar com quem poderia saber dela está desaparecido. Maldito Ætheryll... como ele pode ser tão egoísta? Neesha poderia estar conosco agora se não fosse por ele. Mas não. Agora temos que ir sozinhas atrás de rastros do Murmarath e voltar. Deuses, como eu odeio essa situação. Se pelo menos tivéssemos mais algum homem no grupo, mas a perda em Derkúrya foi pesada. Muitos sacrifícios tiveram que ser feitos. Lembro-me como se fosse ontem...

A cidade estava fechada, era noite. Todos sabíamos da chegada do exército de mortos-vivos, os guardas faziam rondas duplas, a cidade estava com aquele clima ansioso e preocupado. E de onde viria o exército de mortos veio apenas um homem a cavalo. Apenas Murmarath. Ele se aproximou pouco da cidade, antes que uma seta acertasse o chão diante dele, eu assistia a tudo da muralha. Um dos guardas do portão questionou-o e eu nunca vou esquecer o sorriso maléfico e silencioso que ele esboçou naquele momento. Com um movimento ele ergueu seu cajado e nada aconteceu. Até que de dentro da cidade os gritos e choros começaram a ser ouvidos. Quando olhei para trás eu não pude acreditar, mas muitos dos cidadãos que queríamos proteger já estavam mortos ou pior, estavam atacando os outros cidadãos, eram mortos-vivos. Eu ainda me questiono, como? Como ele conseguiu com apenas um movimento ignorar todas as proteções de uma cidade, todos seus guardas, todos os outros usuários de magia e... atacar a cidade de dentro para fora! Eu corri para a estalagem onde meus amigos estavam organizando suprimentos para a viagem que faríamos no dia seguinte, Deeja e Mlan' me seguiam de perto. Mas quando chegamos a taverna já era tarde. Mortos entravam pelas janelas e fumaça saia pelo telhado. Eu estava para cair em prantos, pensando que minhas melhores amigas estavam sendo consumidas pelas chamas, quando do andar superior uma das janelas fechadas explodiu com labaredas, e de lá, Laysla e Neesha pularam para o chão. Eu consegui segurar Laysla, enquanto Deeja agarrou a Neesha em pleno ar. Quando agarrei minha amiga, ela me abraçou forte e chorou alto, uivos de dor, da dor da perda. Eu olhei para janela e já sabia que Kalil tinha ficado para trás, para salvar a ambas. Lágrimas escorreram involuntariamente, mas seu sacrifício não poderia ser em vão. Como todas as cidades que visitamos, saímos de lá correndo, montamos em nossa carroça, deixada do lado de fora dos portões, e quando estávamos para partir, as coisas deram errado de novo. Os mortos surgiam do chão ao nosso redor, avançavam contra os cavalos e seguravam as rodas da carroça, Deeja e Mlan' avançaram para frente da carroça para limpar a área dos mortos, eu fiquei na parte de trás para impedir que eles entrassem ou segurassem as rodas, Neesha e Laysla estavam no cocho lançando feitiços para todos os lados, mas a situação parecia que não iria melhorar. Dos portões da cidade, atrás de nós, mais e mais mortos saíam e se juntavam aos que ainda escalavam suas covas abaixo de nós. Os corpos dilacerados e finalmente imóveis começaram a se acumular ao nosso redor, eu mesma fui salva duas ou três vezes pelas magas no cocho. Foi quando Deeja irrompeu do meu lado, girando sua espada e eliminando seis ou mais mortos de uma vez, tivemos uma brecha de um momento ali, e novamente os mortos vieram nos cercando, mas Deeja foi mais rápido. Ele me empurrou para dentro da carroça e nem olhou para trás, da frente da carroça eu pude ouvir os gritos de Mlan', ele estava sendo comido vivo. Os cavalos que já estavam agitados entraram em pânico e sozinhos puxaram a carroça, Neesha tentou pará-los, eu gritei para Deeja, mas ele ficou para trás. Eu nunca ouvi seus gritos, e nunca mais o vi.

A Guerreira e a BruxaOnde histórias criam vida. Descubra agora