Cinza I
Lua prateada
A tristeza profunda que emanava de uma solitária criança soprou na atmosfera um ar escuro e denso que cobriu quase todo o mundo. A pequena criança balançava-se em um balanço amarrado num galho de uma árvore alta. Os dias se abraçaram com as noites e era impossível saber qual período o dia estava. O frio era seu único companheiro leal. Seus pés impulsionavam o balanço, mas seu esforço chegava a ser tão delicado que não saía do lugar. O vento assobiava em seu ouvido uma pequena canção que logo ecoou em sua cabeça. Isso fez o menino trautear em sua mente uma música que gostava de ouvir em um vinil velho.
O menino observava a calmaria de um pequeno lago com os olhos descansados sobre o barulho limpo. O vento chutou seus desenhos para longe. Pulou do balanço e agarrou antes de partirem. Eram cavalos, muito deles bem detalhados feitos apenas a lápis, outros como se corressem livres num campo verde com uma atmosfera sombria e gélida como manhãs inabitáveis. As folhas continham também inúmeros desenhos de sóis e luas, figuras anatômicas, seres humanos com cabeça de astros.
Os desenhos estavam frescos e ainda com vida. O menino havia acabado de desenhá-los quando foi acertado pelo golpe melancólico. Era o ar. Era os dias. Era a vida. Tudo isso o deixava tão entristecido. O vento trouxe consigo o que ele mais temia. Os dias. A vida.
Tão sorrateiro quanto aquele infiel vento, que não adiantava sua chegada, um fantasma apareceu o observando, de trás da árvore.
O seu lençol branco dobrava o vento para não cair, como se ele aprendesse a dançar para não ter o espírito levado. O ser que surgiu em relance, trazido pelas correntes frias, planejava capturar o garoto em um só pulo. Um só. Mas o menino sentiu que ele havia chegado. Percebeu em como o ar tinha dobrado.
Aquele desconhecido ser deu início a uma peleja pela vida. O menino dava voltas em torno da árvore para escapar daquele ser. Voltas e mais voltas eles davam. Agora não era possível saber quem perseguia quem. O fantasma almejava incansavelmente capturar a triste criança, mas não esperava que o menino corresse tão depressa. O círculo vicioso parecia não fechar, e quanto mais voltas eles davam, mais cansados ficavam.
Até que o fantasma derrubou seu corpo sobre o menino o aprisionando por debaixo do lençol branco.
— Oh, por favor, não cative-me.
— Não há como escapar de mim. Não há para onde fugir.
— Oh, fantasma, clamo a lua e ela o meu pedido atende. Fez de sua sombra vida e recinto aos que chamam por ela.
— E digo a ti que ela o abandonará e então poderei fisgar tua alma e cobrir-te-ei com meu manto pelo resto de toda tua eternidade.
— Oh, lua prateada, a ti recuo-me. Atenda-me!
Então uma figura feminina com cabeça de lua surgiu ao lado do lago e bradara coragem em seu seio, enquanto erguia uma espada prateada na mão direita. Um vestido longo e claro cobria-lhe. A linda imagem da salvação aproximava-se do fantasma e do menino.
— Não temas!
A personificação da lua prateada cravou sua espada no coração do fantasma, que debruçou-se balbuciando maldizeres no chão. O pano cobria o corpo do homem caído. Então a lua segurou a mão do menino e o salvou da angústia.
— Agradeço a ti. Somente a ti. Tua coragem salvou-me das garras do terrível fantasma.
A lua prateada então tirou sua máscara do rosto e dera um sorriso para o garoto. O homem caído no chão descobriu-se do lençol de fantasma e se sentou no chão. Abraçou o menino, que agora não parecia mais entristecido. Eram os pais do garoto.
Sinto que não conseguirei impedir por muito tempo o espírito de ir. Sei que estou sendo roubado de mim. Sei que estou sendo consumido. Mas espero em silêncio pelo dia em que me libertarei. Morrendo ou não. A vida tem sido reutilizada com muita frequência e acredito que essa troca de pele um dia chegará ao espírito, já que não haverá mais pele a ser consumida. Então eu poderei viver, mesmo após a morte. Mesmo após mim.
Parecia ser noite. Fazia bastante frio e logo entramos.
Era visto somente aquilo que estava acobertado pelo escuro circular do trigal.
Havia uma outra grande estrela no céu ao lado do sol. Ela era um pouco maior. O céu estava mais azul do que o normal. A visão com uma leve película borrando os olhos, talvez embaçada, como um sonho.
As árvores eram verdes e davam frutos avermelhados. Avermelhados. Algumas espécies de aves voavam no céu livremente. A terra era verde e cultivável. As cores eram vivas, porém esfumaçada a visão era e logo corrompido os olhos ficaram. Tudo que cercava o trigal estava coberto por um desconhecido escuro circular. Havia uma floresta próxima ao trigal onde era possível escutar uma voz gritando. O vento ondulava as palhas de trigo que brotavam do chão verde e cultivável. Por que era tão difícil enxergar bem? Era um sonho?
O trigal ambientava-se sobre a descida de uma montanha, ao horizonte, um pouco longe das casas, um pouco longe do mundo. A montanha não era alta de rasgar o céu, mas inclinada como se estivesse prestes a debruçar-se sobre toda a plantação.
Na frente da plantação, próximo à base da montanha, uma estrutura de concreto cinza em formato de um enorme retângulo surgiu em relance, quase como se tímida fosse ao ponto de não querer amostrar-se, mas a julgar do enorme círculo escuro atmosférico que cercava tudo que ali estava era quase impossível vê-la. Uma escadaria também feita de concreto cinza com musgo dava acesso à entrada, um enorme paredão de vidro preto reluzia o brilho das duas estrelas no céu e metade do mundo. O vidro impedia de ser visto o que ali escondido estava.
A estrutura brutal sobre a montanha exalava na atmosfera uma sensação pressurizada de algo ruim. A estranha sensação de estar adentrando vivo em um caixão.
O escuro círculo que abocanhava o trigal desapareceu em um golpe só e fora possível ver aquele corpo sem pele entre a floresta e as palhas de trigo mastigando algo avermelhado.
Da floresta, surgiu uma criança cinza correndo. Os pés daquela criança tocaram o solo do trigal. Ela deixou de olhar o mundo com seu binóculo e atentou-se aos sóis, ao vidro, mesmo não conseguindo enxergar o que estava lá dentro. Bastante ofegante, como se corresse por muito tempo. A sua visão também estava borrada, como em um sonho?
Era realmente tentador.
Os bons sonhos de sua infância, de uma época distante. Antes de apagar. Antes de tudo iniciar. Antes de tudo começar a ficar estranho. Antes da vida ficar velha e reutilizável, os sonhos eram coloridos. E tinham significados. Porém, às vezes eram vermelhos e não significavam absolutamente nada. Outras vezes se assemelhavam como agora. Um trigal.
Aquela criança não parou. Seus pés continuavam tocando o chão e amassando algumas palhas. Subir a pequena montanha não parecia tão fácil como imaginou. O trigal era um pouco grande e difícil de penetrar e estava esquentando. Antes a sua visão estava limitada e o mundo tinha bordas, mas agora, desapareceram e esfumaçado ficou o seu olhar.
Ela sentiu que o cansaço a golpearia a qualquer momento se continuasse desafiando o calor de duas estrelas em sua cabeça. A roupa que vestia não a protegia da temperatura exorbitante, pois parecia uma capa de chuva com tecido grosso cinza e uma bota pesada. Então julgou que era melhor parar, mesmo sendo contra sua vontade. Sentou e retirou o capuz de sua cabeça. Era um garoto. A roupa de tons monótonos absorvia todo o calor. O garoto não poderia demorar por muito tempo sob o céu aberto.
Olhou ao horizonte e só se via um mar amarelo quase sem fim. As palhas de trigo se dobravam com o acertar do vento e ondulavam como a água do mar. O menino lançou o olhar baixo e suado ao paredão de vidro preto do retângulo e não conseguiu enxergar o que ali havia. Além de ser quase impossível manter contato por longos minutos, sua visão estava corroída, como se tivesse sido comida pelo sal do mar, e fazia pressão nos olhos para ter alcance de foco melhor. Isso doía. Isso riscava como um glitch.
As coisas más estavam voltando. Ele precisava partir.
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Mexisc-e
Short StoryEste livro é a adaptação de um surrealismo que obtive enquanto dormitava em inquietos sonos. Há cerca de 4 anos atrás eu me deparei com algo que mudou minha vida. Eu não conhecia sua origem nem mesmo seu nome. Mas fez parte de mim durante todos esse...