Mito, 2

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Parte III

Mito, 2

 

É engraçado como as coisas mudam.

     Vivíamos longe da cidade. No campo. Um pouco longe de algumas montanhas. Eu sempre tive certeza que não havia cura para mim. Meu pai fez tudo que pôde, mas não havia cura para mim. Ele trabalhava em cima da montanha, naquele bloco cinza. Passava horas do meu dia vendo o paredão de vidro escuro através do meu binóculo. Minha mãe, embora tentasse não ser levada pela dura incerteza de minha triste vida, pensava melhor não levar a vida assim.

     Meu pai passava todo o seu tempo trabalhando e quando estava em casa escrevia no porão. Era como se eu não o visse, como se não existisse.

     — Eu realmente não entendo muito bem.

     — E o que você não entende? — perguntou a criatura com cara avulsa.

     — Isso tudo é tão confuso, tão... como sabe de tantas coisas?

     — A sua vida está em suas mãos assim como sempre foi. Todas as suas decisões partem de uma única escolha. Imagine que exista dois caminhos a serem tomados, quando se escolhe um deles, o outro é dispensado, mas não deixa de ser real. O caminho que você traçará não impede que o outro deixe de existir, mas o final, embora seja incerto para tal, é o mesmo para ambos, você só tomou um outro rumo. Às vezes não. Às vezes o tempo é ímpar e impede o espírito de ir, e não se alinha. Você não é o único. Você não divide sua solidão somente com você. Você coexiste em várias linhas temporais e cada uma delas exige que suas decisões o levem para o final, que de certo modo, mas não tão profundo, é o mesmo, é o início. O caminho que você não tomou acontece, mas não aqui. Lá em cima. Qual rumo pode livrar do tempo? Qual escolheu?

     — Eu não escolhi nada.

     — Mas claro que escolheu. Olhe, você está aqui. Com você. Você podia ter escolhido não entrar no buraco, mas entrou. E aqui está você.

     Meu pai trabalhou por muito tempo na  plantação e logo morreu. Mas não morreu por trabalhar muito. Eu nunca cheguei a vê-lo, nem em fotos, nem em lugar nenhum.

     

     As atividades no trigal pararam após um acidente no laboratório de pesquisa — a base. Algumas regiões foram evacuadas por conta da contaminação do solo, da água e da vida.

 

     — É engraçado como as coisas mudam. Me questiono se tivesse tomado a decisão correta eu estaria em outro lugar. Talvez até melhor. Mas você nunca entendeu. Por isso que está aprisionado à lemniscata.

     — O que eu deveria ter feito, afinal?

     — Aquele homem que você viu lá fora é o seu pai. Ele morreu no acidente do laboratório. Ele o persegue, mas não pode se aproximar porque tudo desapareceria se te tocasse. Ele, eu e você deixaríamos de existir porque somos um só.

     — Meu pai não está morto! Você está mentindo!

     — Esse nó que está em volta de nós nos cerca para impedir que nossos espíritos sejam libertos. Libertar o espírito é de longe o fim mais cruel que poderíamos ter. Se seu pai o tocar, não haveria para onde fugirmos. Estaríamos condenados. Estaríamos todos mortos.

     — Por que diz isso?

     — Porque tenho medo de que o nó se rompa. Tenho medo do mar e da lua. Tenho medo de perder você.

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