Parte II
Mito
“Culpamos pelos nossos desastres o sol, a lua e as estrelas, como se fôssemos vilões por necessidade”. Shakespeare.
Essa vida, assim como vive e viveu, você terá de viver mais uma vez. E depois inúmeras vezes. E não vai ter nada de novo, cada dor, cada prazer. Tudo vai retornar na mesma ordem e sequência. Você precisa mudar. As coisas ao seu lado estão desmoronando, mas só você sabe o peso disso. Só você sabe o peso de que é sentir ser o único a cair.
Apesar de tudo, ainda é você.
Apesar de tudo, ainda é você. Você vive o presente e logo viverá o futuro, que será presente mais uma vez e assim inúmeras vezes. Um pouco distante do passado. Mas você sempre se verá. O Paradoxo de Bootstrap. Você começa a vagar por aí com um rumo alterado, vivendo a mesma coisa sem saber onde ela começou, vivendo inúmeras vezes e não vai ter nada de novo, cada dor, cada prazer. Tudo retornará na mesma ordem e na mesma sequência. Sem saber onde começou, mas a saber de onde veio. Vagando incessantemente até encontrar você mesmo e puder se ver vagando no espaço entre futuro e passado. Suas versões se encontrarão.
Não temas, soou como eco.
— Sei que você deve estar bastante assustado agora, mas a vida aqui é melhor. Não é como lá fora.
— Eu não entendo bem. O que é você?
— Eu sou você. — Ela sorriu.
— Como assim? O quer dizer com isso?
— Eu não quis assustá-lo. Me senti da mesma forma como você está se sentindo agora. Sei que é estranho, porém é real.
O menino paralisou.
— Isso não deve ser real. Não pode ser. Você não existe. Eu, eu estou apenas...
— Claro que sou real. Eu sou todas as coisas.
— Isso não está acontecendo, não está acontecendo, não está acontecendo...
— A vida torna-se sem sentido quando já está bastante degradada pelo tempo. Você deve estar se sentindo muito sozinho... mas acredite, eu posso ajudá-lo. O fim pode ser o início de tudo. O nosso não está tão longe disso.
— Ajudar como? — perguntou o menino.
— Eu sou apenas uma criatura solitária.
O garoto baixou as sobrancelhas.
— Mais uma vez está tudo acontecendo. Assim o mundo foi criado. O tempo é o criador de tudo. Ele é Deus. A sua aparência, a sua personificação. Você está mais uma vez aqui.
— Por que está tentando me confundir? O que está tentando fazer com isso tudo?
— Eu estou tentando te ajudar a se livrar do tempo. — Ela sorriu.
— Me livrar do tempo?
— O tempo não possui piedade. Ele é uma prisão. Mas eu sei como fazer você se livrar dele.
— Mas não estou preso.
— Não aqui.
— Onde então?
— Lá em cima.
— Lá em cima onde? Na plantação?
— Sim.
As coisas têm gosto doce. As raízes alimentam a terra levando os fluidos que saem de mim para o mundo, para o seu mundo, lá em cima. Aqui em baixo também faz parte do seu mundo, mas não no seu tempo, não. Se as coisas ainda estão vivas e não emurchecidas é por minha conta. Lá em cima, o homem me criou. Ele é o nosso criador. Somos dele. Somos ele. Ele é nós e nós somos ele. Eu não podia existir sem você ter o encontrado. Nós três não podemos existir sem o outro. Se um morrer, suas outras versões não existirão. Você o criou e ele me criou. Portanto somos dele, somos seu. Fazemos parte de uma só carne.
Você está vendo suas duas versões. Ambas coexistindo na mesma linha temporal. Obedecendo o mesmo tempo que lhe são dadas. As versões, uma se torna a figura escura que habita a floresta e a outra se transforma em Mexisc-e.
Mexisc-e foi o nome que você me deu.
Eu fui criado lá em cima e agora eu supro a terra, os sóis, o trigo, as árvores, os animais, as fadas, a Mulher. Tudo. Eu sou uma falha. Sou sua falha. A falha do homem. A nossa falha. E todas as coisas que existem estão presas pelo tempo. E não há outro modo de libertá-las a não ser você.
— Isso não pode ser real.
— Não há como negar as suas existências. Não há como escapar de si mesmo. É claro que é real.
O garoto não conseguia enxergar bem dentro daquele vermelho borrado.
— Eu sou você e também aquele homem? — perguntou o garoto um pouco confuso.
A criatura parecia satisfeita. Seus dentes abraçaram em um sorriso imenso.
Todas as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas, cometendo os mesmos erros em todas as circunstâncias. É inevitável que isso mude. Ou que haja mudança. Sempre vivem no mesmo padrão. No automático. Se guiando na mesma direção achando que estão saindo da caixa. Na verdade não há. Sem saber o que você é. Sem saber que está na linha. Vivendo apenas em desastre. Sem um astro, ou com a companhia de uma má estrela. Talvez culpando-as por seus erros, ou aceitando que elas nunca interferiram na sua trajetória. É muito fácil culpar um astro do que se culpar. Porque você é o vilão dessa história. Aceitando apenas o que lhe é entregue. As pessoas nunca mudam e nunca mudaram. Então não é hoje que você alcançará o que deseja. Não mesmo. Sempre viajando no mesmo paradoxo. Se sabotando nos mesmos erros. Errando da mesma forma até não errar mais. Vagando no presente momento que lhe é dado. Sem questionar. Aceitando a repetição da qual não é capaz de fugir. Não é capaz de fugir de você. Mesmo que você esteja no futuro, ou que você viva em memórias.
Mesmo que você possa acessar todas as suas versões nas três linhas temporais, seria quase impossível você escapar. Porque o problema não está nas coisas que precisam ser mudadas, mas sim em você. Você é o erro. Você é uma falha. Você é o cálculo errado que resultou em minha criação. Pois o homem falhou, você falhou e tudo agora são as sobras dos seus erros. Não há como esconder isso.
É inevitável.
É sem fim.
Apenas você.Você deveria acordar agora. Sua mãe deve estar preocupada. Ela sabe que você está passando por isso novamente?
Acredito que agora você tenha que ir. Está tarde, amigo.
O sol se pôs e a noite cobriu o céu. Está escuro agora.
Não vermelho mais.
Isso não é um sonho.
Não é o inferno.
Isso é você.
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Mexisc-e
Historia CortaEste livro é a adaptação de um surrealismo que obtive enquanto dormitava em inquietos sonos. Há cerca de 4 anos atrás eu me deparei com algo que mudou minha vida. Eu não conhecia sua origem nem mesmo seu nome. Mas fez parte de mim durante todos esse...