Meus olhos ardiam com a claridade, quando ouvi a porta se abrir. Minha cabeça doía e pude sentir meus olhos se fechando novamente enquanto tentava me sentar . A voz que me impediu de levantar veio acompanhada do toque, que me forçava a deitar outra vez.
- Você ainda está de repouso. Por favor não se esforce ou suas feridas voltarão a abrir. - estranhamente consegui sentir o pesar naquela frase. Havia culpa naquela voz, e isso eu não conseguia ignorar.
Forcei-me a abrir os olhos outra vez. Sentia a claridade incomodar menos agora. Algo não estava certo. Meus olhos estavam abertos, não estavam? O dono da voz certamente percebeu meu desconforto, talvez por isso decidiu se explicar.
- Naquela tarde, na ponte - A hesitação cobria-lhe a voz - quando os disparos começaram, você foi... atingida na perna. - O suspiro veio mais carregado. - Após disparo , você caiu e bateu a cabeça. O médico pediu pra você manter repouso absoluto.
Eu procuro pela voz ao redor do quarto e tudo que consigo ver são as nuances de luz no ambiente. Levanto as mãos na altura do rosto, numa falha tentativa de me enxergar. Tento entender o que está acontecendo, mas em minha mente só consigo me sentir confusa, e me pergunto por que não estou vendo nada. O desespero vem me dominando aos poucos, e mais uma vez falho na tentativa de me beliscar pra acordar desse pesadelo. Frustrada, só consigo pensar em me bater. Me estapear até que o sonho acabe e eu acorde em casa outra vez. Cada tapa sendo mais forte que o anterior, até sentir outra mão me parando.
A pressão é forte em meus braços, me obrigando a deixá-los imóveis na cama. Ouço a voz que agora reconheço ser a daquele homem. O cara que fez minha vida ruim ficar ainda pior. Seu Timbre é grave, baixo e está perto o suficiente pra que me deixe acuada, mas nesse momento o que me assusta de verdade é não conseguir ver seu rosto. Um rosto que eu já tinha me habituado e que queria muito esquecer. Me assusto por que sei que ele esta próximo de mim, e tudo que consigo perceber são suas mãos e sua respiração quente. Não consigo ver nada, e nesse momento, sou devastada pela raiva e pelo medo.
-Eu não consigo te enxergar - meu murmúrio soa baixo e minha voz sai trêmula. O medo crescente me faz aumentar a voz. - Eu não consigo enxergar nada! - A sonolência desapareceu e agora tudo que consigo fazer é gritar e chorar.
Sinto um leve balanço ressoar pela cama e a voz daquele homem soar assustada -Você não consegue me ver?! - o desespero em sua fala era palpável. Por um momento ele parecia tão perdido quanto eu. - Eu vou ligar para o médico. - Ele parecia nervoso e amedrontado, mas naquele momento eu só queria... eu nem sabia o que queria.Eu chorava, e por um momento era apenas a minha voz presente no quarto, e isso me deixou ainda pior. Até ouvir novamente aquela voz e perceber que ela não ajudou em nada a me acalmar. - Por favor, me diga o que está havendo! Não grite, eu também não sei o que fazer! - Sua voz era angustiada, grave, e naquele momento, levemente alta.... Eu a descreveria como horripilante.
Aquele homem estava ali, em um dos piores momentos da minha vida. Suas palavras não ajudaram, pelo contrário me deixaram ainda mais desesperada. E eu não fiz questão de esconder. Sentia meu rosto carregado. Minha expressão não devia ser das melhores. Minha cabeça doía. Meu choro era estranho aos meus ouvidos.
Forcei-me a sentar outra vez. E as mãos novamente me impediram, obrigando-me a encontrar palavras coerentes.
- Não me toque! - vociferei. - Não ouse encostar em mim - minha voz saia pesada, rouca. a raiva que até então, vinha de mansinho, agora encontrara seu ápice. - Se me encostar um dedo que seja, eu o matarei. Isso é uma promessa! - Gritar estava sendo mais difícil que o normal. Minha garganta doía, as palavras falhavam. Nunca me imaginei sentir tamanha raiva na vida.
Nem mesmo quando era mais nova, nem com as dificuldades do passado. As frustrações que senti não chegam nem perto da magnitude do que sinto agora. Lembro-me bem da tristeza, da solidão e da dor... Mas não da raiva. Nunca me senti tão enfurecida quanto agora.
- Me deixe em paz! Saia ! - o homem que novamente esteva em silêncio, se aproximou aproximou de mim outra vez. Pude sentir seu pequeno susto ao ouvir meu grito quando tentou me segurar. - Já lhe disse para não me tocar ! - Minha voz falhou ainda mais. A garganta doeu, e não pude evitar a tosse que veio em seguida.
- Por favor não se esforce! Você esteve desacordada por três dias. Seu corpo ainda não se recuperou! - A frase veio tomada por um certo lamento. Eu não conseguiria definir mesmo que tentasse. Meu foco não era esse - se é que eu tinha um foco naquele momento. Eu sabia que precisava acalmar minha fúria.
- Compreendo perfeitamente sua repulsa por minha presença. Não vou ficar aqui por mais tempo, apenas aceite isso. - consegui ouvir o barulho de algo próximo a mim. Algo sobre o criado mudo talvez? O pensamento se desfez com um novo som. Eu até pensei em retrucá-lo, mas antes que eu pudesse abrir a boca para mais uma seção de histeria, escutei novamente sua fala.
- Por favor, estenda as mãos. -A voz dele estava calma, e contrariada acatei a ordem . - Estou lhe entregando um copo com água. Descanse bem. Estarei sempre por perto.
Não consegui responder, e mantive o copo nas mãos até escutar a porta do quarto fechar-se. A curiosidade vinha em ondas tão fortes quanto o medo. A raiva não foi suficiente para ignorar a garganta doendo, e esse foi meu incentivo para aproximar o copo do rosto. - É agora ou nunca - eu pensava. enquanto respirava fundo.
Senti o copo bater em minha bochecha, e irritada, aproximei com cuidado o copo à minha boca. O sentimento de alívio aumentou quando percebi que a água não tinha gosto. Não poderia estar em envenenada. Poderia?
Estendi o braço para fora da cama tentando encontrar o criado mudo. Busquei com os olhos, o contorno de algum móvel, mas não encontrei nada. Minha visão realmente se fora. Outro suspiro me deixou, e eu sabia que iria chorar de novo. Continuei tateando e pensei ter encontrado o criado mudo, deixei o copo repousar sobre ele e no silêncio do quarto, pude ouvir foi o estalo do vidro colidindo com o chão.
O copo se espatifou ao lado da cama, imitando naquele momento, exatamente o modo que eu me sentia: quebrada. Eu só não sabia o quê exatamente havia se quebrado. Mas senti que ia além de um corpo físico...
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Alma Resgatada
RomanceQuando uma tentativa de concertar as coisas dá errado, ele se vê preso em um dilema. Tudo que ele precisa é fazer uma troca, mas nada sai como planejado. Seguir o conselho de sua esposa lhe trouxe ainda mas problemas, e agora ele precisa lidar com o...