Capítulo 8

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   A pele arrepiava com o frio latente do inverno. A pequena mão vasculhava a lixeira em busca de alimento. Já sabia que não encontraria nada para se aquecer. Ao menos não ali. Só lhe restava procurar comida. O corpo pequeno se debruçava sobre a enorme lata de lixo. Ela sabia que precisava ser rápida. Mais rápida que o dono do restaurante, que ela já avistava correndo porta a fora do estabelecimento. O desespero a fez se mexer demais, se desequilibrando e caindo. Junto com ela, caiu a lixeira.

   Os gritos na voz masculina a fizeram encolher de medo. Essa seria mais uma noite em que não conseguiria comida? Sua mente parecia anestesiada apesar do medo. Era o frio. E ela sabia que morreria se não voltasse logo para o esconderijo... O corpo pequeno procurou o restante de suas forças para se levantar do chão. E foi derrubado outra vez pelo chute o grande homem que estava na sua frente, lhe chamando dos mais variados nomes. Outra vez ela tentou fugir, mas foi agarrada pela grande mão, que lhe erguia do chão. O olhar do homem era de asco, e sua voz trazia palavras de ódio, junto com uma ordem. Só poderia sair dali quando colocasse todo o lixo de volta ao latão...

   Ela estava congelando. E com muita dificuldade conseguiu cumprir a ordem. Em sua mente só havia um pensamento:

  Preciso voltar ao esconderijo.

   Não conseguia sequer sentir seus pés em contato com a calçada. Seu caminhar era lento. Não havia firmeza nos passos, e por causa disso, acabou esbarrando em alguém. Mas tudo que pôde raciocinar era em como aquele casaco parecia quente... O impacto a fez cair, mas a dor no quadril não era nada comparada à dor da fome.

   A criança conseguiu ouvir mais vozes. As palavras eram grosseiras, mas ela já estava acostumada... Sua mente estava se apagando quando sentiu seu corpo ser içado, e em seu ultimo momento de consciência, a garota se aconchegou nos braços fortes que a acolheram e seu ultimo pensamento refletiu algo que logo logo seria roubado de si: Sua inocência.

   'tão quentinho'  -  Como toda criança, seu ultimo pensamento antes da escuridão chegar, foi no alivio de finalmente ter alguém ao seu lado lhe aquecendo pra dormir...

   Acordo assustada, me sentando rapidamente na cama. Eu sentia meu coração bater com todas as forças. Já fazia muito tempo que não sonhava com o passado. É obvio que o sonho foi o efeito das palavras de Carlos.

   "... não foi ele quem te obrigou a fazer parte da gangue"

   - Realmente doutor, não foi ele quem me obrigou a entrar. Foi a fome. – o murmúrio me trouxe um gosto amargo á boca. Há anos que tenho fugido dessas lembranças. E com meia dúzia de palavras de um estranho, tudo vem a tona. Eu sou mesmo uma fodida.

   Preciso me acalmar e voltar a dormir, mas um som próximo me deixa em alerta. São passos, que se aproximam, e o barulho da porta. Num momento de desespero eu volto a me cobrir, e finjo estar dormindo novamente.

   - Eu poderia te culpar, como você faz comigo – essa voz... me fez estremecer novamente. É ele outra vez. Mas o que ele quer no meio da noite? Ou melhor, o que ele quer no meu quarto?

   - Você sabe que ela se foi – sua voz pareceu embargada por um momento. – Ela se foi, e ainda dói. Dói muito! – sua voz aumentava cada vez mais. Ele parecia chorar, mas o cheiro do álcool me fez questionar se ele não estava apenas bêbado.

   -ELA SE FOI! Ela se foi, e você está aqui. Você está aqui, e não ela.– seu grito me assustou, e precisei de muito esforço pra me manter parada. Afinal eu ainda estava dormindo.

   Segundos de silencio vieram, e foram apenas isso, segundos. O choro que veio do homem quase me fez chorar também. Era tão triste. Era tão doloroso. Tão desesperado que não pude evitar de chorar com ele em silencio.

   - Eu amava ela. – a frase veio cortada entre soluços. – Eu AMO ela. E ela não está aqui.

   Mais soluços e gritos, acompanhado de frases tão pesadas que eu só podia chorar com ele.

   - Eu perdi tudo. Eu perdi tudo, mas o que mais dói é ter perdido ela. E você esta aqui. Você está aqui. Usando as roupas dela, roubando o cheiro dela. Apagando a memória dela. Você está aqui... No quarto que era pra ser do nosso filho. Você está aqui e nem mesmo me disse obrigada.

   Ouvir essas palavras acabaram comigo. Eu não conseguia mais ficar em silencio. Meus soluços se misturavam aos dele. Eu não era capaz de dizer uma palavra. Mas ele era.

   - Eu perdi muita coisa. Mas o pior sentimento é o de ter perdido ela. Perdido nosso filho – ainda que ele chorasse, eu conseguia sentir a raiva em sua voz. – Você perdeu a visão, e eu perdi meu coração naquele dia. Nós estamos quites você não acha? – Novamente ele gritava. – O que te dá o direito de se achar melhor que eu? O que te faz pensar que você é a vitima?

   Meu choro era cada vez mais alto. E era uma mistura de raiva, desespero e culpa.

   - Sabe o que me dá o direito de te odiar? – sua voz ainda continha raiva, mas agora era apenas um murmúrio. – O berço do meu filho, que foi única coisa que pude comprar pra ele, cheio de equipamentos para fisioterapia, encostado numa parede qualquer... É isso que me dá o direito de te odiar.

   - As roupas da minha esposa, que você está sempre vestindo, há meses. As adaptações que paguei pra fazer nessa merda de casa, pra que a princesinha ingrata não sofresse tanto... É ISSO QUE ME DÁ O DIREITO DE TE ODIAR.

  Outra vez o choro é tudo que se escuta no quarto.

   Por um breve momento percebo que ele se acalma. Embora eu não consiga copiá-lo.

   - E sabe o que me irrita mais em tudo isso? – novamente sua voz está baixa. – Eu não quero te odiar.

   Suas palavras me pegam de surpresa. E com elas, um forte aperto no meu coração.

   - Eu não quero te odiar. Não por que eu sou melhor que alguém. Eu não quero te odiar, por que eu sei que tudo foi escolha minha. Eu escolhi esse caminho. Por isso não posso te odiar. - Suas ultimas palavras vieram carregadas de um sentimento de raiva tão intenso, que novamente me arrepiei. - Não posso te odiar por que eu já me odeio.

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