Sofia

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"Da janela do seu estúdio, Sofia observa a cidade sob seus pés, se questionando sobre as amarguras da vida que levaram o mundo a se encontra na situação anárquica em que está. Ela vaga pela cidade observando e absorvendo, rodeada por um futuro distópico e radiante, até que um evento a coloca em situações inusitadas e cheias de perigos. Sofia será guiada por uma noite de caos, experimentando a excitação, o medo e o desespero."

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I.

As luzes do palacete criavam um show psicodélico de cores que mergulhavam pela janela se espalhando pela sala do estúdio, pintando com cores quase abstratas e serpenteadas. Os hologramas se estendiam tanto que pareciam invadir as paredes vizinhas, mas se desfaziam em fragmentos pixelados antes mesmo de atingi-las, como uma estrela cadente que morre antes de tocar o chão. Do lado de dentro da grossa janela que protegia o estúdio das adversidades de um mundo tóxico, Sofia observava, com um olhar vago e monótono, a agitação desfigurada da sociedade caótica sob seus pés, corpos equivocadamente livres e tão semelhantes quanto as gotas da garoa prateada que se chocava contra o vidro. Ela tentava imaginar os sons da cidade, vozes que oscilavam em tons e idiomas que ela nem sequer conhecia, apitos e sirenes misturadas a motores roucos e poderosos, gritos de desconhecidas vítimas da noite, cochichos sensuais entre cúmplices do pecado e, eventualmente, clones metálicos ou orgânicos de animais que não passavam de uma sombra do que Sofia imaginava do passado que nunca viveu.

Seus olhos se ajustaram, com lentes nanoangulares do tipo popular entre a elite, flagrando a imagem mais próxima ofuscada pelo seu bafo. Por um momento, seu reflexo parecia se desfazer em um movimento descompassado de pequenas ondas sobre a pele, os lábios incharam sumindo com as linhas finas e gentis, as bolsas sob seus olhos pareciam se desfazer como as sardas e o tom vermelho do seu cabelo, a maçã se destacava se prestasse mais atenção e esses pequenos detalhes mutáveis que se espalhavam por todo o seu corpo como se ela própria fosse uma miragem oscilante no deserto escuro e neon.

Sofia suspirou como se carregasse um peso anômalo sobre seus ombros. Além da realidade como percebia ordinariamente, ela pensou se poderiam ser pelas incontáveis horas mergulhadas na virtualidade do xCeos, algo que a fazia se sentir cansada, mas não cabia em palavras, ela apenas sentia. Por muitas vezes ela se pegava pensando se aquele sentimento não era pura curiosidade, talvez um descaso por motivos ocultos em seu inconsciente. Fosse como fosse, ela suspirou outra vez.

— Você está se recuperando bem. Mas por que não oculta a cicatriz? — comentou um homem se aproximando. Sofia nem sequer se virou.

— Ela me deixa fodona — respondeu. O homem riu. Ela o encarou com um meio sorriso. Ele retribuiu e passou cuidadosamente a ponta do dedo sobre a cicatriz que se abria sob os olhos até o queixo de Sofia.

— Não entendo o que você vê de tão interessante lá embaixo.

Sofia desfez sua atenção, pressionando a palma direita sobre seu diafragma e suspirando.

— Nada me interessa lá — disse com desdém.

— Há muito mais do que imaginamos nesse mundo, minha filha — disse cabisbaixo, também olhando pela janela. — Lúcio Avati, eu sempre sonhei que meu nome traria algo benéfico, sabe, mas parece que a ascensão exige brutalidade.

Sofia encarou o pai, que permaneceu perdido em pensamentos.

— Do que você está falando, pai?

— Hoje eu não quero que você vá à reunião! — Ele exigiu em um tom ríspido.

— Mas eu sou diretora no Conselho... — Antes que pudesse terminar, três pessoas entraram pela porta principal sem cerimônias, entre elas, o motorista de Lúcio.

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