Nem mesmo o barulho da chuva me deu paz naquela noite. A canção das gotas grossas sobre o teto acima de mim, as imagens aleatórias que se formavam diante dos meus olhos no teto escuro como ideias para novas peças, a respiração do amor da minha vida ao meu lado... Nada me acalmava. Meus pais chegariam pela manhã, e o simples telegrama recebido com a notícia foi o suficiente para atormentar-me.
Eles sempre foram e sempre serão o meu pior pesadelo. Como se não bastasse virem da Europa para a nova capital, vangloriam-se por serem invasores religiosos e doutrinadores ferrenhos. Ó, grande família Ruel! Perderam o filho pecador que sucumbiu ao pecado ao amar outro homem. Fugi para o interior, para viver de um teatro que não me limitasse, que não precisasse da aprovação do clero.
Encontrei meu lar em Poço das Almas, onde a religiosidade não me colocaria a sete palmos abaixo da terra. Irônico, pois a cidade possuía um cemitério gigantesco além do riacho; espaço usado também pela capital. Apesar de ainda manter certas tradições, a população que não passava dos mil habitantes dava liberdade aos artistas locais do pequeno teatro. Total liberdade.
O sangue esvaneceu de meu rosto quando segurei o papel amarelado a uma semana, informando que meus pais não só sabiam onde eu morava, como queriam me visitar. E, faltando um dia para a chegada, ainda não fazia ideia do motivo que poderia levá-los a uma cidade onde os únicos atrativos são a arte que produzo e os cultos da capelinha.
Quando amanheceu, eu enxergava ainda menos sem os óculos costumeiros devido às bolsas inchadas abaixo dos meus olhos. O telegrama dobrado sobre a escrivaninha ao lado do candeeiro só me lembrava o porquê do sono precário.
Virei-me na cama grande meio a um ruido sonolento, observei o vazio amarrotado que Frederico deixara e sorri ao lembrar que ele sempre levantava mais cedo do que eu; mesmo quando passávamos as noites acordados nos ensaios, repassando falas horas a fio, ainda ficava apenas o lençol ondulado como a minha primeira vista ao abrir os olhos.
Ainda em meus pijamas, segui para a janela. A chuva tinha abrandado e o que restou foi apenas o piso lamacento da estradinha que ladeava o riacho. Ao longe, um borrão roxo se aproximava na direção da gota de água que deslizava no vidro. Permaneci ali por alguns minutos, com lábios curvados em desprezo e pose ereta como um fantasma que espreita do segundo andar.
Quando a coisa sem forma se tornou a carruagem dos meus pais diante de minha casa, eu já estava vestido apropriadamente para recebê-los. Não possuía empregados, eram caros para custear com as poucas economias, então eu mesmo teria o desgosto de encará-los. Por sorte, Frederico estava ao meu lado com sua beleza inspiradora e a barba ruiva que tanto amava para me passar confiança.
— Vai ficar tudo bem. Não vou deixar que eles machuquem você. — Ele me confortou com um sussurro e segurou a minha mão por um instante. Concordei com um aceno de cabeça e respirei fundo, apesar de querer sair correndo dali.
— Jack, meu garoto, quanto tempo! — Meu pai, o ilustre Amadeus Ruel, foi o primeiro a sair do transporte usando o terno mais caro que poderia ostentar. O rosto afundado no pescoço de gravata extremamente apertada o fazia parecer um sapo falante. — Foi uma surpresa saber que estava em Poço das Almas. Uma cidade tão condenada!
Fingi meu melhor sorriso, os cantos dos meus lábios doeram ao forçar.
Minha mãe, a devota Juliet Ruel, desceu logo em seguida com a ajuda dele. O terço de ouro com crucifixo de prata brilhou no pulso quando ela se esticou para pegar as malas no topo da carruagem.
— Trouxeram malas? — perguntei, incrédulo.
— Trouxemos as malas, e seus tios — completou ela, dando uma risadinha que era para ser delicada e contida, mas que saiu tão estridente quando a voz que falava. Seguiu até o homem grande e ruivo ao meu lado e deixou a bagagem aos pés dele, como se fosse apenas um criado. Me segurei para não os mandar embora aos berros, afinal não sou um cavalheiro que se exalta fácil.
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Pantomima
Mystery / ThrillerDizem que se você olhar por muito tempo para o fundo do poço das almas, ele desperta seus desejos mais sombrios. Alguns também acham que, se beber das águas do riacho que ladeia a cidade abaixo, sua mente fica aberta ao diabo. Jack Ruel, um diretor...