Capítulo 2 - Expulso do paraíso

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Antes das cinco estava livre, já que os visitantes saíram para bisbilhotar e investigar tais lendas inexistentes. Aproveitei para organizar os manuscritos com Frederico e finalizar a última página do trabalho que começara na última semana, mas nem o café forte mantinha meus olhos em estado alerta. Nada de chá inglês daquela vez.

— Por que não descansa um pouco? — sugeriu Freddie, vendo minha mão sonolenta errar o recipiente de tinta preta ao guiar a caneta. — Vou para o teatro ajudar acender o lustre antes de anoitecer, e você descansa até a hora dos ensaios.

— Não, tenho que terminar esse texto — neguei, apoiando o queixo na mão em um suspirar, como se fosse algo que eu pudesse controlar. O teatro ficava, literalmente, do lado de casa e não seria nada mal tirar um cochilo depois de uma noite de perturbações. No entanto, eu queria me enfiar nos textos e no trabalho para esquecer a situação que estava desde que acordara. — Quem sabe, apresentá-lo às dez. É a minha obra mais forte para um público exigente.

— O exilado e a barca ao submundo. Imaginei que fosse revelar ao público um dia.

— Obviamente! Mas, para os meus pais apenas uma parte... — falei ou pensei ter falado, pois meus olhos já estavam fechados naquele momento e as palavras guiadas na mera intenção de dizê-las.

Senti um suave beijo em minha testa, ouvi um remexer na sala e tudo se aquietou.

Quando acordei, estava escuro e a caneta tinteiro marcava um risco borrado no papel. A janela aberta da cozinha só revelava que a rua principal estava sem iluminação, já que as chuvas atrapalharam a manutenção das lamparinas. Era difícil acender o óleo com tochas naquele tempo, mas nada impedia de os moradores carregarem os próprios lampiões.

Saí pelo chão de paralelepípedos enlameados no meu pequeno círculo de iluminação, seguindo oposto ao riacho bem diante das minhas lentes. As águas estreitas e ruidosas me fizeram pensar na tal lenda. Quem bebe das águas do riacho deixa a alma aberta ao diabo. Pensei por um momento em voltar e beber goles grandes, como se saciasse uma sede tamanha. Ignorei. Segui para o teatro sem nome da cidade.

Um outro foco laranja revelou uma jovem negra de fartos cabelos crespos, ensaiando um trecho de Le nozze di fígaro como um aquecimento vocal. Estreitei os olhos, mesmo de óculos, para identificar se era Helena ou Madalena, a gêmea dela. Ambas estavam no ato principal de um musical que produzia.

— O nórdico já passou a parte do balé — contou ela, referindo-se à Frederico. Reconheci Helena, já que usava um cordão de quartzo transparente. A irmã carregava uma pedra rosa. — Quatro turistas chegaram não muito tempo e mandei-os para os assentos centrais. Disseram que você os convidou. É verdade?

Ri em nervosismo e troquei o lampião de mão para ajeitar os óculos sem muita necessidade. Eles chegaram antes.

— Não necessariamente, mas pode-se dizer que tenho algo para eles — confirmei. — Quando entrar para arrumar as suas coisas, diga que liberei todos mais cedo. Será uma sessão privada.

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