Capítulo 5 - Guardiões da barca

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Fui direto para o teatro após sair do cemitério. Foquei nos ensaios da peça, marcação de palco e teste de entonação do texto. Na cena que escolhi naquela tarde, Helena e Madalena eram as receptoras da baca que cantavam e dançavam para as almas recém-chegadas; Madalena apenas dançava. Já Frederico, sobre o transporte cenográfico, interpretava o barqueiro junto a outros dois atores: Gabriel e Miguel, que interpretavam os protetores e guias dele.

— E a história se firma, com o guia protetor e o instigador — comentou Helena, na hora do intervalo, sentando-se no banco ao meu lado. Freddie e Miguel arrastavam o barco cenográfico para o proscênio¹ para colar a neblina de papelão pintado que soltou da lateral.

— Gabriel e Miguel são ambos protetores — contrariei, mas a curiosidade da fala da atriz me fez voltar a atenção para ela. — Não estou escrevendo sobre poço das Almas, mas suas mães me disseram hoje que meu enredo é idêntico. Sabe, eu nem conhecia as histórias daqui.

— Notamos que você é bem intuitivo desde que veio morar aqui com Frederico. Chegou com ele, ambos cheios de ideias e acatamos você como nosso diretor. — Ela pousou os pés sobre o encosto do acento abaixo e esboçou um calmo sorriso. — Tem uma criatividade que desperta cada vez mais, e, se fosse apenas um inglês invasor qualquer sem a história que possui, não estaria por aí com tanta tranquilidade. Poço das Almas costuma ser mais acolhedora com quem já tem raízes.

— Ou com quem precisa de ajuda — complementou Madalena, sentando-se ao lado da irmã.

Franzi o cenho e voltei o olhar para o palco. Ainda sentia a atenção de ambas sobre mim. Minha mente repassou cada vez que as vi em cena ou juntas no mesmo espaço, e elas sempre foram incrivelmente sincronizadas. Meu raciocínio desviou para Frederico, aquele homem que eu conhecera no navio a caminho da capital e que pegou o trem para a cidadezinha comigo. Ele já foi casado onde morava, mas fugiu quando a cabana simples que vivia pegou fogo e matou a esposa. O povoado do vilarejo o acusou, disseram que os livros e poemas que ele escreveu invocaram o fogo do inferno para o casebre de palha.

Então, mudei o foco para a população de Poço das Almas, com os rostos meramente memoráveis e quase desfocados em minha lembrança. Figurantes, ao comparar com os atores e aqueles relacionados diretamente a eles.

Nas peças, os moradores enchiam o teatro em pequenas e inúmeras cabecinhas nas poltronas como formigas fazendo volume. Elogios automáticos e palmas sonoras, mas nenhuma feição que marcasse o suficiente para se formar em meus registros mentais.

Frederico percebeu meu distanciamento por não ter comentado nada do cenário arrumado, já que eu sempre sugeria novas marcações. Ele deixou os guias no palco e desceu, seguiu pela escadaria lateral e parou na fileira de bancos onde me encontrava.

— Está tudo bem, Jack? — perguntou ele. Pela visão periférica notei os rostos das gêmeas virarem na direção dele primeiro. — Aconteceu alguma coisa?

— Não aconteceu nada, Freddie — menti, e esbocei um calmo sorriso ao voltar a atenção para ele. — Estava pensando nos próximos atos da peça. Se o barqueiro continuará com sua missão, será aprisionado ou morto. Eu pensei... Em talvez os condenados tentarem contê-lo em pele humana, e ele terminar a peça gritando que voltará.

A feição dele pareceu se tornar preocupada e séria ao ouvir meu improviso, como se o tempo fechasse por um segundo. No entanto, logo se acalmou e tornou-se suave como ele sempre era.

— Ele apenas continuar a missão é uma boa ideia — sugeriu ele, aproximou-se e tocou levemente o meu queixo para observar o rosto. — Gostei dos novos óculos.

— Olha, eu gostei da ideia do barqueiro vingativo — instigou Helena, retomando o assunto. —Calisto voltando aos trabalhos, recrutando pessoalmente almas novas para o submundo!

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