Um tranco violento faz minha cabeça sacolejar. Abro os olhos e meu corpo desperta com um tremor.
— Estamos subindo numa balsa — diz meu pai. — Desculpa, a rampa sempre dá uns solavancos.
Olho para ele, meio aturdida. Então, as lembranças começam a voltar.
Minha mãe morreu ontem à noite.
Meu pai ainda não faz ideia.
Tenho uma madrasta e uma irmã postiça.Olho pela janela, mas há fileiras de carros bloqueando toda a minha visão.
— Por que é que a gente está numa balsa?
— O GPS indicou um engarrafamento de duas horas na rodovia 87. Deve ter sido acidente. Achei que a esta hora do dia seria mais rápido pegar a balsa até a península Bolívar.
— Balsa até onde?
— É onde fica a casa de verão da Alana. Você vai adorar.
— Casa de verão? — Arqueio uma sobrancelha. — Você casou com uma mulher que tem uma casa de verão?
Meu pai dá uma risadinha, mas não foi piada.
Da última vez que fui visitá-lo, ele morava numa quitinete barata em Washington, e eu dormi no sofá. Agora é casado com uma mulher que tem mais de uma casa?
Eu o encaro um instante e entendo de onde vem a mudança no visual. Não é a idade. É o dinheiro.
Ele nunca foi rico. Nunca chegou nem perto.Ganhava dinheiro suficiente para pagar a pensão da filha e morar numa quitinete, mas era o tipo de cara que economizava cortando o próprio cabelo e reutilizando copos de plástico.
Agora, olhando para ele, fica bem nítido que as pequenas mudanças se deram graças ao dinheiro. Corte de cabelo no salão. Roupas de marca. Um carro com botões em vez de alavancas.
Olho o volante e vejo um felino reluzente e prateado bem no centro. Meu pai dirige um Jaguar.
Sinto meu rosto se contorcer numa careta e me viro para a janela, antes que ele veja minha expressão de repugnância.
— Você agora é rico?
Ele solta outra risadinha. Que ódio. Eu odeio esse tipo de risadinha; é a mais condescendente de todas.
— Fui promovido faz uns dois anos, mas não a ponto de poder comprar uma casa de verão. A Madchen ficou com alguns bens depois do divórcio, mas também é dentista, então vive muito bem.
Dentista.
Que coisa horrível.Eu cresci num trailer com uma mãe dependente química, e agora estou prestes a passar o verão numa casa de praia, com uma madrasta com diploma de doutora, ou seja, a prole não deve passar de uma riquinha mimada, com quem não terei absolutamente nada em comum.
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Ossos do coração
Fiksi PenggemarFilha de uma mãe problemática e um pai ausente, Lili precisou aprender a se virar sozinha desde pequena. Apenas dois curtos meses separam o tão sonhado futuro do passado que tanto deseja deixar para trás. Mas uma reviravolta faz Lili perder até mesm...