Aquele era, sem sombra de dúvidas, o pior voo da vida dela. Nem mesmo o voo para Londres, para seu primeiro concerto internacional, foi tão ruim. Nem mesmo um voo com Paula Terrare surtando a cada minuto por eles estarem atrasadas, foi tão ruim. Nem mesmo um voo com Neco e Leco ao lado dela seria tão ruim.
— Eu operei uma válvula mitral recentemente e, modéstia a parte, foi uma cirurgia excelente... — entre um homem que não sabia falar sobre qualquer coisa que não fosse cirurgia cardíaca e uma criança que descobriu adorar perguntar sobre cirurgia cardíaca, havia uma Flávia que nutria o mais profundo, intenso e avassalador ódio por cirurgia cardíaca.
Ela queria desmaiar.
Não, ela queria que o cara à sua direita desmaiasse.
Ela não aguentava mais escutar eles falando daquilo. Na época da escola, Flávia até gostava de Biologia, sempre tirava notas boas, mas ela não fazia ideia de que era possível alguém gostar tanto assim disso, como aqueles dois. Não era possível que um ser humano passasse quatro horas ininterruptas falando sobre a anatomia de um coração e sobre o "quão incrível é operar, Miguel!". Ele, Guilherme, pelo que escutou, falava sobre aquilo como se fosse a coisa mais interessante de sua vida, como se respirasse por cirurgia cardíaca.
Se Flávia escutasse um pouco mais sobre isso, ela mesma pararia de respirar, voluntariamente.
— Tão, tão chato. — murmurou para si mesma.
— O quê? — O Guilherme parecia ter escutado seu lamurio.
Ela girou a cabeça na direção do menino, que olhava atentamente para seu dinossauro. "Onde que tá a sua valva mitral?" dizia.
— Porra, cara, você tá há horas falando sobre cirurgia pra um menino que nem parece ter cinco anos. — ela disse, baixando os fones e os depositando em seu pescoço. Se continuasse a conversar com ele, o assunto sumiria?
— E qual o problema? — parecia indignado — Cirurgia é um assunto muito interessante, pro seu governo. Eu, quando era da idade dele, já sabia que queria ser médico...
— Ele é uma criança! — ela interrompeu — Crianças gostam de brincar, não de fazer cirurgia!
— Mas ele estava gostando da conversa! — rebateu.
— Porque crianças conversam sobre qualquer coisa!
— Então conversa com ele... — estendeu a mão, em um convite — Vamos ver se ele se interessa sobre o seu assunto.
Flávia estreitou os olhos. Havia um sorriso presunçoso no rosto dele, quase como se estivesse com aquela batalha ganha.
— Desafio aceito, Veia Mitral.
Guilherme revirou os olhos.
Ela pôs seu melhor sorriso e olhou diretamente para Miguel. O menino ainda parecia fascinado pela procura da válvula no boneco do dinossauro. Suas pequenas mãozinhas tateavam por toda a extensão do brinquedo e sua face estava contorcida em uma expressão de concentração(ou seria raiva?). Flávia sabia que o menino realmente tinha gostado da conversa com Guilherme, a animação das crianças ao descobrir coisas novas do mundo era reconhecível. Mas, ela precisava muito que os dois parassem de falar sobre aquilo; ao menos até aterrizar.
— O que você tá fazendo? — disse, suavemente.
Miguel tinha cabelos encaracolados e escuros, que caíam em cascata por sua testa; sua cabeça até tentava espantá-los para que não atrapalhassem sua visão, mas sem sucesso. Quando seus olhos castanhos levantaram-se e olharam atentamente para Flávia, ela quis apertá-lo e abraçá-lo para nunca mais soltar, de tão fofo que era. Crianças costumavam exercer esse efeito nela, fazer seu útero coçar e querer sair por aí, atrás de um amor que pudesse apreciar crianças tanto quanto ela.
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HOTEL PIANETTI
FanfictionEnquanto viajava para a Itália, Flávia encontrou um companheiro de viagem um tanto diferente. [FlaGui | Short-Fic]