Luz e Sombra

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Respirou profundamente. A brisa tocava o rosto quando encarava tudo da torre, da mais alta. As pernas balançavam suavemente na sacada, as longas vestes amarelas bailavam com o bater do vendo e o eventual ânimo que tinha quando olhava a força do vento contra as árvores. Estava feliz, a pele escura como a noite se iluminava junto das lâmpadas delicadamente feitas, as cúpulas lindas e transparentes que permitiam que as chamas criassem uma luz sublime ao começar de um entardecer. Enna riu, como se aquilo fosse algo divertido e belo, enquanto as demais estavam logo atrás, olhando o céu escuro e o assobiar do vento. Ela gostava de escutar aquela música, um assobiar tão lindo, o aviso de que o Senhor do Vento estava de bom humor, o que não acontecia há muito tempo. Perguntava se haveria adormecido, os olhos castanhos ainda admiravam o céu quando virou o rosto, olhando as demais vigias. Claramente não era para estar ali, não quando dali via as ruas de pedra sendo tomadas de luz e cor, das crianças de belos cachos dançando enquanto um festival ocorria, um evento tão novo e tão tentador, mais do que aqueles que vinham de terras distantes. Estas que não explorava, não, Enna estava fadada a aquela missão de sempre. E talvez fosse até mesmo uma pena que não espiasse os humanos, mesmo que fosse uma suave tristeza que eles não a vissem. Tudo ali era como terra e sopro para eles, algo que não se vê, talvez por não acreditarem em contos ou histórias contadas pelas antigas gerações. Ela, entre os tecidos amarelos esvoaçantes, tocou com os dedos o adorno dourado que prendia os cabelos cacheados, aqueles cachos grandes e volumosos como um tempestuoso e belo oceano. Talvez fizesse mesmo muito tempo que não espiava humanos, não poderia quando sair para fazer o que quisesse. "Está pronto" uma das bruxas dissera, assim como ela. Enna sorriu ao ver a cúpula dourada com as faíscas que bailavam em torno de si, segurou firmemente, os olhos castanhos encarando a luz. As estrelas. Sua função era simples, manter as luzes desse mundo acesas, um dom tão belo que lhe foi presenteado. Diziam que aquela que tudo controla simplesmente teria visitado na noite tempestuosa em que Enna nascera, e olhando o berço e as bruxas em volta, sorriu. E com aquela graciosidade estonteante, apenas tocou os pequenos cachos, dizendo que o brilho das estrelas estava em seus olhos, e a escuridão da noite, em sua pele. Aquela que controla tudo havia dado a Enna um grande presente, que olhava agora.

— Parece tão pequeno. — Resmungou. Certamente seria pior se deixasse cair, talvez os ventos fossem atrás de si. Aquilo certamente irritaria o Senhor dos Ventos, mas acreditava que ele estava muito ocupado para se importar com isso. O céu escuro se mostrava cada vez mais e estava na hora. Acender as velas no templo acima da colina, e assim o brilho das estrelas cobriria aquele mundo. "Ao trabalho" uma das bruxas dissera, quase em um desdém por Enna sempre prolongar demais uma simples tarefa que nunca havia sido complicada. Ela que acendia as luzes do céu, e a cúpula sempre foi protegida naquela mesma torre. Os sapatos pisaram na beirada da sacada, o vento bagunçava seus cabelos. Foi simples, um passo e os ventos contra seu rosto, a descida lenta como luz, como vento, como uma presença única em todo aquela vasta escuridão do anoitecer. A noite fria não a incomodou, e os tecidos bailavam ao que descia, tão leve. Os pés tocaram as pedras da rua e os dedos envoltos de anéis dourados tatearam a cúpula que continha a luz das estrelas, aproximou de si como um breve abraço a algo que sempre estivera consigo, um presente daquela que lhes era a maior das divindades. Para Enna, era ainda mais importante saber que ela, que a tudo controla, viu algo único em si. Uma coisa que valia a pena dar-se a importância. E os passos calmos passando pelo portão principal tornaram-se uma lembrança vívida quando crianças com flores nas mãos passaram por si.

Ela quase se esquecia disso.

Enna, por mais importante que fosse, tornou-se uma presença invisível aos olhos de todos, apenas vista naquela torre. Seu lar desde que nascera da luz da lua e da escuridão da noite. Olhou as crianças, as mulheres que festejavam. Tudo que poderia fazer era unicamente espiar a felicidade alheia e aceitar que aquele dom, ter a luz do mundo, a tornou invisível. Disseram que isso impediria que alguém quisesse machucá-la e por vezes se questionava se haveria um outro motivo para isso. Não ser vista, para Enna, significava ser esquecível. Olhou as luzes novamente, as que acompanhavam as árvores, os pontos luminosos e a música distante que vinha da cidade, das praças decoradas de cor e de vida. Então, aconteceu. O sorriso que tinha nos lábios se desfez quando tudo se apagou, sentia que nem mesmo haveria restado velas acesas nas casas. E quando se virou, contemplou a escuridão e o medo de todos. Seres que amavam a luz, sentiam-se abandonados na escuridão. E as crianças procuravam as mães, e as famílias estavam chamando uns pelos outros. A escuridão os tornou cegos, e Enna não gostava disso. As luzes que carregava não eram vistas, não enquanto tocasse a cúpula. Esbravejou consigo mesma que tudo voltaria ao normal assim que acendesse o céu, assim que as estrelas brilhassem e os lembrassem que a escuridão nunca será eterna. E os passos se apressaram na trilha que normalmente era tão iluminada. A montanha a esperava, o templo estava lá, envolto de sombra e silêncio. E tudo que pensou foi em como a escuridão teria chegado tão brutalmente, entre as colinas via os vilarejos como pontos de escuridão e medo. Humanos que eventualmente ela espiava, vendo os templos onde pessoas parabenizavam uma noiva, ou tavernas em que caçadores se aglomeravam enquanto contavam histórias de suor e glória. E mesmo que passasse dentre suas ruas e casas, ninguém a veria. Uma vida invisível, e agora tudo estava escuro, a longa subida e tudo que envolvia as árvores e o ar.

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