ANA
Desço as escadas estreitas do beco olhando para cima. O céu azul de Heliópolis não tem uma mísera nuvem escondida atrás das construções altas demais para ser seguro, que parecem se inclinar sobre mim. Nenhum drone de entrega zumbe pelo céu. É um calor do inferno, mas eu gosto. Levo uma sacola de pano verde no ombro e só meu celular e o registro universal no bolso de trás do short. Está tão quente que penso em prender meu cabelo, mas esqueci a fita que uso em casa e tem uma camada fina de suor na minha nuca.
Pulo uma poça d'água permanente no degrau mais largo da escadaria, bem onde o portão da Dona Dalva me espera, estreitinho e bato palmas o mais alto que posso, porque a campainha digital tão antiga quanto eu ainda está com o fio desencapado e não funciona. Qualquer dia peço para o Lino, meu irmão mais velho, passar uma solda no fio. Ele trabalha com freelas de faz tudo e tem sempre um arsenal de coisas nos bolsos.
Uma senhora de 67 anos caminha pelo corredor, a porta de metal da entrada bate alto e Dona Dalva pragueja, o rosto balançando em descrença. Então ela me vê, abre um sorriso tão largo que quase quebra o rosto dela, magrinho e flácido e diz:
— Aninha, filha! — ela balança as mãos e a chave do portão tilinta. — A Sônia é rápida!
— Mãe é a melhor Dona Dalva. O vestido da Jennifer estava desfiado embaixo, então a mãe fez uma bainha para consertar, por conta dela mesmo.
Eu entrego a sacola para ela, que abre, espia dentro e joga a alça por cima do ombro. Minha mãe, Dona Sônia, é costureira desde sempre e conseguiu clientes fixos a um tempo. A segurança do pagamento compensa descer e subir umas 20 vezes na semana para pegar e levar encomendas, o que sempre cai no meu colo.
— Achei que cê' estava com a molecada do Damião, não é hoje que sai o resultado?
— É sim, meio-dia. — respondo, menos animada do que gostaria. — Mas era para eu vir trazer as suas roupas antes, vou descendo lá agora.
— Você é um anjo menina! É ouro! — tosse Dona Dalva, segurando as minhas mãos com força e balançando — Vai, vai, se não se atrasa e eu vi uns meninos que estudam com você descendo para a avenida a uns cinco minutos. Vou orar por você, que Cristo vai abrir suas portas e fazer você ser aceita nessa escola! Tenha fé menina, fé!
— Obrigada Dona Dalva! Vou orar para agradecer a senhora!
Abraço a senhora rapidinho e ela quase me expulsa dali, me empurrando para descer. Os carros na avenida fazem um barulho ensurdecedor, mesmo que motores à gasolina tenham saído de circulação a quase cinco anos no Brasil e quando tento atravessar, me esgueirando fora da faixa de pedestre mal pintada, uma moto quase me atropela, fazendo um desvio que quase derruba o cara dirigindo. Ele me xinga tanto que saio correndo sem olhar para trás antes que cause um acidente e tropeço no meio fio seguinte, bem na frente de uma tabacaria.
Heliópolis acorda antes do nascer do Sol, então as ruas já estão uma bagunça. Ambulantes vendem aparelhos eletrônicos pelas calçadas, dos mais antigos como fones sem fio até os conectores de áudio novos para prender nas têmporas e ouvir música e o cheiro de fritura nova da pastelaria na esquina faz a minha boca se encher d'água. Uma manhã de janeiro comum, com exceção de que todo o país esperava uma só lista de nomes, como se fosse um bilhete de loteria. E era.
Ano passado, consegui me matricular nas turmas do cursinho popular perto de casa e, até as provas da Planalto em meados de novembro e dezembro, aquele salão em cima de uma borracharia foi quase uma segunda casa. O Damião (apelido que deram para o cursinho por conta do nome do coordenador), sempre foi uma opção concorrida no bairro, principalmente as turmas focadas na Planalto Central, já que não pagamos nada para estudar, só fazemos uma prova para definir quem consegue a vaga. Apenas dez sortudos de cada região do país recebem a oportunidade de entrar na Planalto e a concorrência é tanta que a chance de passar chega perto de 0, por isso um cursinho é tão importante.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Planalto Central
Teen FictionA Planalto Central é um colégio interno de elite no coração de Goiás, em meio ao cerrado. Dona do segundo vestibular mais concorrido do Brasil, organizada pelo Governo Federal e regida pela maior empresa de tecnologia do país, ganhou fama por formar...