Capítulo 4

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ANA

Me arrependo amargamente de aceitar participar do trote no momento em que me entregam uma venda e me pedem para ficar quieta na frente de uma parede, esperando. A cara do veterano que fala comigo e com o grupo de alunos em que eu tentava me enturmar está tão animada que nem cogito recusar.

Eu seguro o ombro do bolsista na minha frente. A gente caminha em fila indiana, umas 70 pessoas (todas tão arrependidas quanto eu), sem saber exatamente onde nos levam. A ideia do trote é ser legal, uma integração entre alunos e veteranos, mas eu sei que nada muito bom pode sair dali. Espero que seja divertido, mas se não for perigoso, já fico satisfeita.

Nos levam pelo térreo do colégio, que imagino ser o pátio principal, perto do restaurante ou talvez uma das quadras de esportes. Tropeço umas três vezes na pessoa que está caminhando na minha frente e na segunda vez ela já me xinga. Quero reclamar de volta, mas as palavras somem enquanto estou tentando andar e eu não faço nada. Estou quase desistindo de ficar ali e tirando a venda, quando todo mundo para de uma vez, com um tranco. Tudo fica em silêncio, com um burburinho de gente no fundo.

— Bom dia Planalto! — Uma voz alta e feminina soa até mim, amplificada por um microfone de última geração, muito fiel à voz original. — Hoje a gente inaugura oficialmente o início do ano escolar. Ainda falta uma semana pras aulas começarem, mas não dá pra ficar sem um dos eventos mais tradicionais da Planalto!

Todo o lugar grita de animação e eu me controlo pra não tremer inteirinha. Estar vendada me dá uma sensação horrorosa.

— Isso! — A voz soa de novo, comemorando com todo mundo. Tem um sotaque que eu acho que é de Goiás, mas não tenho certeza. — Pra quem não sabe, o trote é feito 100% por alunos e esse ano vai ser um pouco diferente! Pra ser da Planalto de verdade, tem que ter feito bem mais do que passar em uma prova ou ter dinheiro pra entrar. A Planalto é um símbolo de futuro, de transparência e de uma educação de primeira. A Planalto Central é um acontecimento! O futuro da nação. Então, novatos, é hora de provar que fazem parte de tudo o que essa escola representa.

Eu não consigo ver os alto falantes, mas sei que estão lá porque um tipo de hino sai tão alto atrás de mim que acho que perdi uma parte da audição. O hino passa uma vez e depois outra, sobe de volume para que a gente consiga ouvir na gritaria de gente e aí para, deixando só o barulho de pessoas. Quase agradeço. Agora consigo ouvir meu coração batendo no fundo dos ouvidos, acelerado.

— Jurem, agora, sob o hino dessa instituição! Repitam!

E a gente repete o hino meio que com medo, não sei o que vão fazer com os novatos, com tantos bolsistas na mão de gente rica. Fico apavorada. Tenho medo do que adolescentes ricos são capazes. Mas leio livros demais, talvez seja tudo ficção... Percebo que o cara do meu lado está com tanto medo quanto eu e isso me deixa mais calma.

Obrigam o nosso grupo a se ajoelhar do nada, enquanto a gente ainda está berrando o juramento da Planalto. Uma mão bate nas minhas costas e me obriga a cair. Sinto meus joelhos estalando quando bato no chão e acho que ralei a pele, mas não paro de falar, não sei por quê. É quase uma prova de resistência e eu não posso simplesmente desistir agora.

Sinto um líquido gelado, meio pegajoso e não identificado cair em mim e perco o ar completamente. Aí o cheiro de pó de café e coisas que fedem a chorume caem no meu cabelo. Penso em ir embora ali, mas não faço nada e continuo repetindo o hino, fora do ritmo. Ao menos coloquei uma camiseta mais velha, mas isso adianta pouco. Alguém esfrega alguma coisa dura, que parece açúcar mascavo na pele do meu pescoço e mais coisas molhadas são jogadas contra o rosto dos novatos. Acho que respiro um pouco do que bate na minha cara e fica um gosto horrível no fundo da garganta, como se estivesse enfiado a cara em uma poça d'água suja.

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⏰ Última atualização: Mar 20, 2023 ⏰

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