Coração Aberto

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Flávia colocou a bota e saiu da casa da Paula no mais absoluto silêncio que ela e Guilherme conseguiram fazer sem rir e cochichar, Quando desceram até o carro, a garota estava menos sonolenta e sentiu o frio bater no corpo.

"Aqui." Guilherme falou, jogando o blazer em cima dela.

"E onde é esse lugar só nosso que vamos?" Ela ajeitou as mangas e sentiu o corpo aquecer enquanto o cheiro amadeirado do perfume do doutor ia da roupa até o corpo dela, impregnando.

"Entra no carro." Ele mandou.

"Cê é muito mandão." Flávia reclamou batendo a porta.

"E você é abusada, que estou sendo gentil." Ele ligou o carro levantando as mãos indignado como sempre se dirigia a ela, mas seu olhar brilhava e o tom de voz não era bravo.

"Ai, tá bom, Guilherme, acelera aí. E olha, é bom ter comida, tô com fome!"

"Vamos fazer um tour."

"Quê? Tour? Essa hora da noite?" Ela botou as pernas no painel do carro e o encarou, confusa.

"Vou te colocar numa confusão como você fez comigo." E pisou no acelerador.

Enquanto ele voava pelas ruas vazias do Rio de Janeiro e o cabelo da Flávia sentia o vento, a rádio tocava uma música diferente; I know we've both been afraid/ But we can't run from the wind and the thunder/ When we're dancing under the rain, the rain, the rain.. Flávia sentia que alguma coisa boa estava prestes a acontecer e seu coração teve medo, porque todas as outras vezes que sentia isso, principalmente ao lado do doutor das galáxias, era levada pro mais alto ponto do céu e saía de lá de cima da Via Láctea com o coração em pedaços. Sempre porque ele era grosso, cínico, frio ou falava da intocável da Rose.

Normalmente não conseguia parar de falar quando estavam sozinhos no carro, principalmente porque não queria que o silêncio tomasse conta do espaço e ele percebesse seu desconforto ou escutasse o (des)compasso do coração dela. Mas ali, em silêncio, com a música tocando alto, as mãos certeiras dele batucando levemente sob o volante e os fios brancos balançando, ela só queria ficar em silêncio.

"Você não vai falar nada? Perguntar onde que estou te levando?"

"Já fiz isso e você não quis dizer, o que me resta é esperar."

"Eu vou fazer o caminho inverso." Ele disse, virando o volante com tudo.

"Guilherme!" Flávia gritou.

"Ah, agora sim uma reação da Flávia. Já achei que estava com medo de mim."

"Não dá pra ter medo do Doutor das Galáxias."

"É justamente dele que quero que esqueça. Hoje eu sou o Guilherme." E pisou mais ainda no acelerador, a rodovia vazia de madrugada.

Flávia apertava os cintos preocupada, mas não conseguia parar de rir. Quando ele finalmente desacelerou, estavam perto de um local com alguns táxis, até que ela se lembrou de quanto tempo fazia desde que tinha estado ali vivenciando pânico, fugas e terror.

"O aeroporto?"

"O aeroporto. Vem, vamos." Ele saiu do carro e foi abrir a porta pra ela, dando a mão.

Ela ainda estava aflita, mas aceitou. Os dois caminharam pelos terminais de entrada até irem para uma espécie de container em um hangar. Um dos funcionários abriu o container e Flávia sentiu um calafrio tomar conta dela, como se algum dos funcionários fosse prendê-la por algo que ela nem sabia que tinha feito ou que a Morte estivesse perto. E era ele, os destroços do avião dentro do container a lembrando de quando morreu no colo de Guilherme tentando pilotar para salvar a própria vida.

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