E Os Seus Ossos São As Suas Correntes

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  Hoje, pela manhã, ao acordar, senti um fulgor entorpecente. A festividade tinha acabado, mas havia uma paz imensa no ambiente e nas pessoas... Mas não em mim.
  Hoje, com o novo ano, desejo, apesar de tudo, coisas novas e agradáveis, mas no meu quarto, úmido e fedendo a morfo e cigarro, a novidade parece nunca estar disposta a visitar-me, mostrando que o tempo é de fato um atroz que olha-me mostrando-me os dentes... E continuo perdido em mim mesmo, em um cubo acinzentado, divagando por entre o espaço-tempo, com músculos atrofiados e uma tosse seca que rasga-me a garganta. Mas sou incapaz de transcender-me, e o meu crânio sempre será a prisão da minha alma, por onde não posso escapar.
  Hoje recebo a minha visitante assídua, que senta-se ao meu lado na cama, provando não ter fugido da minha solidão nesse novo recomeço. Ela não diz nada, e apenas olha para a frente, com olhos esvaecidos e um sorriso insensível em seus lábios. Ela encosta-se em mim, sussurrando, com uma voz distante:
-Porque a sua carne é a minha alcova...
Ela afaga o meu rosto e cobre gentilmente os meus olhos. Como sempre, como se lesse os meus pensamentos, ela respondeu ao espectro que abriga todo o meu mal secreto. Suas mãos geladas no meu rosto, como se estivesse desenhando-me, dá-me um vislumbre da paz que eu queria sentir, e que era diferente da paz vazia que todas as pessoas estavam sentindo; é a paz de sentir-me como um mártir em uma cruz construída para ser o único lugar do mundo capaz de resguardar-me de fato.
  Abrigado na minha paz de mártir, conforto-me na sensação dela na minha pele, e mantenho as janelas da minha alma seladas, conservando assim a pureza que foi-me concedida. Estou impassivo, e sinto levemente um toque metálico na minha testa, como um beijo. Não importo-me em abrir os olhos, e ouço, de repente, a sinfonia do meu requiém, em um som estridente, mas que desperta em mim um sentimento de nostalgia e esperança.
  Divago na sinfonia, finalmente encontrando uma felicidade estranha dentro de mim, não com imagens fantasmagóricas de um lugar devastado, mas com um céu de vermelho vívido, cachoeiras tingidas de um preto brilhante e uma cruz feita de carne que dá-me um abraço maternal.
  Contemplando em mim e nela, com todos os meus sentidos, o prazer das sensações, e maravilhado com a visão precisa da beleza jamais encontrada no mundo, fecho lentamente os olhos que sempre pareceram incapazes de serem fechados, para finalmente habitar, pela eternidade, o meu paraíso. A voz dela, que é como uma música a guiar-me, encontra-se em uma harmonia perfeita com a minha sinfonia, e diz-me, com voz calorosa e melódica, as palavras que fazem a minha carne transbordar, e a minha mente libertar-se:
-Porque a sua carne é a minha alcova, e os seus ossos são as suas correntes.

Retrato de um Poeta MalditoOnde histórias criam vida. Descubra agora