Ah, pobre menina, mal sei o que dizer-te... Odeio o fato de você estar distante e incapaz de ouvir todos os meus gritos roucos, com problemas que eu sequer sabia que existiam, e eu estar alheio a isso, tão impotente, como se toda a minha vida, até esse momento, fosse da mais total alienação e distanciamento da realidade! A minha voz falha cada vez mais, e nem tenho ideia do que estou gritando nessa tentativa louca de alcançar-te, mas continuarei insistentemente até que falte-me voz.
Meu mundo sempre foi tão confortável e conveniente, que eu apenas fechava-me nele, maldizendo todo o resto e sofrendo o mais singular dos sofrimentos, como se eu fosse um mártir... Até você chegar mostrando-me um inferno estranho e inescrutável, que eu não poderia sequer perceber algum traço de sua existência antes de finalmente poder ver, através de seu corpo cansado e maltratado, sua voz distante e quase inaudível, seu olhar impassível e mórbido, o quanto ele devastava cada centímetro do seu ser.
Ah, antes de tudo isso você era tão bela aos meus olhos! Você foi amiga da primavera, esbanjando vivacidade e cores, sempre em harmonia com a natureza, como se fosse sua irmã, e assim era! Seu sorriso, tão lindo, era o ápice da minha alegria, e todo ser vivo deliciava-se ao contemplá-lo, mas foi tão de repente que você, que sempre desfrutou com prazer a magnitude do sentir, tornou-se um casco vazio, incapaz de sentir ou desfrutar qualquer coisa da vida, perdendo o brilho de seus olhos, que esvaiu-se pela queda constante de lágrimas frias e desoladoras...
Meu coração, querida, sente o impulso febril e suicida de passar pela minha garganta em direção a você, para tentar, mesmo que seja em vão, aquecê-la o suficiente para sentir-se mais viva, mesmo que meu corpo ainda tente, relutante, conservar em si mesmo algum traço de vida ao estar perto de tamanho poço abissal que engole e extingue qualquer resquício de esperança que ousa aproximar-se.
Aqui, entretanto, frente ao abismo, ainda continuo pensando em mim mesmo a cada vez que meu grito ecoa em você, como se fosse a constatação de que estarei condenado pela eternidade à impotência, sempre exposto ao ridículo e ainda maldizendo tudo. Talvez toda lamúria que eu sinta não seja apenas sobre você, mas sobre mim mesmo, que continuo nessa insistência na esperança de encontrar algo que torne-me alguém que não precise de um mundo ilusório para apoiar-se, mesmo que para isso eu precise usar todo o meu sangue para validá-lo.
Toda carta de amor é sobre si mesmo, assim como toda a minha lamúria... E isso faz-me tão estúpido, meu bem, que temo distanciar-te mais ainda! Mas não importo-me em ser egoísta, vão ou tolo, se eu ainda puder alcançar-te algum dia, minha pobre querida! Portanto, até lá, permanecerei aqui, esperando-te na beira do abismo, para que encontre-me e veja que não está sozinha, mesmo que todo o mundo pareça renegar a sua existência. E que eu possa também, ao alcançar-te, alcançar a mim mesmo, que sofro pela pesadíssima carga de minha consciência.
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Retrato de um Poeta Maldito
شِعر"A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez Habitam nosso espírito e o corpo viciam, E adoráveis remorsos sempre nos saciam, Como o mendigo exibe a sua sordidez." Charles Baudelaire. Reunião de textos e poemas de um poeta que renega sua própria po...