2 de Setembro (Pt 2)

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AMANHA TENHO PROVA DE ED.FISICA E HISTORIA, MANO EU TO FERRADO(A).

Era terra. E minhas unhas estavam pretas de lama, da mesma forma que ficaram na última vez
em que eu tivera o sonho.
Enrolei o lençol e o enfiei no cesto de roupa suja embaixo do uniforme do treino do dia
anterior. Entrei no chuveiro e tentei esquecer tudo enquanto esfregava as mãos e os últimos
pedaços pretos do meu sonho desapareciam pelo ralo. Se eu não pensasse naquilo, não estaria
acontecendo. Era assim que eu lidava com a maioria das coisas nos últimos meses.
Mas não quando se tratava dela. Não dava para evitar. Eu sempre pensava nela. Sempre
voltava a ter o mesmo sonho, mesmo não conseguindo explicá-lo. Então, era esse meu
segredo, tudo que queria contar. Eu tinha 16
anos, estava me apaixonando por uma garota que não existia e estava ficando louco.
Não importava o quanto eu esfregasse, eu não conseguia fazer meu coração parar de bater
forte. E mesmo com o cheiro de sabonete Ivory e do xampu, eu ainda conseguia sentir aquela
aroma. Bem de leve, mas eu sabia que estava lá.
Limão e alecrim.
Desci as escadas para a segurança da mesmice de sempre. Na mesa de café da manhã, Amma
colocou na minha frente o mesmo prato de porcelana azul e branco (porcelana-dragão era
como minha mãe chamava) com ovos fritos, bacon, torrada com manteiga e canjica. Amma era
nossa governanta, mas era mais como minha avó, apesar de ser mais inteligente e mais mal-
humorada do que minha verdadeira avó. Amma tinha praticamente me criado, e ela achava que
era a missão dela me fazer crescer mais uns 30 centímetros, apesar de eu já ter 1,89 metro de
altura. Esta manhã eu estava estranhamente faminto, como se não comesse há uma semana.
Comi um ovo e dois pedaços de bacon e já me senti melhor. Sorri para ela com a boca cheia.
— Não pegue no meu pé, Amma. É o primeiro dia de aula. — Ela colocou com força na minha
frente um gigantesco copo de suco de laranja e outro maior ainda de leite (integral, o único
tipo que bebemos aqui).
— Acabou o achocolatado? — Eu bebia achocolatado do mesmo jeito que algumas pessoas
bebem Coca-Cola ou café. Mesmo de manhã, eu estava sempre atrás da minha dose de açúcar.
— A-C-L-I-M-A-T-E-S-E. — Amma usava palavras cruzadas para tudo.
Quanto maior, melhor, e ela gostava de usá-las. O modo como ela soletrava as palavras letra
por letra fazia parecer que ela estava dando um tapa na cabeça da gente a cada letra. — Quero
dizer, acostume-se. E não pense em botar um pé pra fora daquela porta antes de beber o leite
que dei pra você.
— Sim, senhora.
— Vejo que você se arrumou. — Eu não tinha me arrumado. Estava de jeans e uma camiseta desbotada, como em quase todos os dias. Cada uma tinha um dizer diferente. A de hoje tinha
escrito Harley Daviáson. E eu estava com o mesmo Ali Star que usava havia três anos.
— Pensei que você fosse cortar o cabelo — falou como se fosse uma bronca, mas eu percebi
o que era realmente: puro e simples amor.
— Quando falei isso?
— Você não sabe que os olhos são a janela da alma?
— Talvez eu não queira que ninguém use uma janela pra ver a minha alma.
Amma me puniu com mais um prato de bacon. Ela mal chegava a 1,50m de altura e era
provavelmente mais velha do que a porcelana-dragão, apesar de em cada aniversário ela
insistir que estava fazendo 53 anos. Mas Amma era qualquer coisa, menos uma senhora
amável. Ela era a autoridade absoluta na minha casa.
— Bem, não pense que você vai sair nesse tempo com o cabelo molhado.
Não gosto da sensação que essa tempestade está me dando. Como se uma coisa ruim tivesse
sido chutada no vento, e nada consegue impedir um dia como esse. Ele tem vontade própria.
Revirei os olhos. Amma tinha uma maneira própria de ver as coisas.
Quando ela estava com o humor assim, minha mãe costumava dizer que ela estava
escurecendo: religião e superstição misturadas, como só acontece no sul. Quando Amma
escurecia, era melhor ficar fora do caminho dela. Assim como era melhor deixar os amuletos
dela nos peitoris das janelas e as bonecas que ela fazia nas gavetas onde ela as colocava.
Comi mais uma garfada de ovo e terminei o café da manhã dos campeões: ovos, geleia
congelada e bacon, tudo esmagado entre as torradas num sanduíche. Enquanto enfiava isso na
boca, olhei pelo corredor por puro hábito. A porta do escritório do meu pai já estava fechada.
Meu pai escrevia à noite e dormia no sofá velho do escritório de dia. Era assim desde que
minha mãe morreu em abril passado. Ele podia muito bem ser um vampiro; era isso que minha
tia Caroline tinha dito depois de ter passado uns dias conosco naquela primavera. Eu
provavelmente tinha perdido a oportunidade de vê-lo até o dia seguinte. Aquela porta não se
abria depois que era fechada.
Ouvi uma buzina na rua. Link. Peguei minha mochila preta caindo aos pedaços e corri pela
porta na chuva. Podia muito bem ser tanto sete da noite quanto sete horas da manhã, de tão
escuro que o céu estava. O tempo estava estranho havia alguns dias.
O carro de Link, o Lata-Velha, estava na rua, o motor fazendo barulho, a música em alto
volume. Eu ia para a escola com Link todo dia desde o jardim de infância, quando nos
tornamos melhores amigos depois de ele me dar metade do seu Twinkie no ônibus. Só depois
descobri que tinha caído no chão. Apesar de nós dois termos tirado carteira nesse verão, Linkera quem tinha um carro, se é que podíamos chamar aquilo de carro.
Pelo menos o motor do Lata-Velha estava superando o som da tempestade.
Amma ficou na varanda com os braços cruzados em uma postura reprovadora.
— Não toque música alta aqui, Wesley Jefferson Lincoln. Não pense que não vou ligar para
sua mãe e contar a ela o que você ficou fazendo no porão o verão inteiro quando tinha 9 anos.
Link fez uma careta. Poucas pessoas o chamavam pelo nome real; só a mãe dele e Amma.
— Sim, senhora.
A porta de tela da varanda bateu. Ele riu, cantando pneu no asfalto molhado ao se afastar do
meio-fio. Como se estivéssemos fugindo, era assim que dirigíamos quase sempre. Só que
nunca fugíamos.
— O que você fez no meu porão quando tinha 9 anos?
— O que eu não fiz no seu porão quando eu tinha 9 anos? — Link abaixou a música, e eu achei
bom, porque ela era péssima e ele ia me
perguntar se eu tinha gostado, como fazia todo dia. O grande problema da banda dele, Quem
Matou Lincoln, era que nenhum integrante sabia tocar um instrumento e nem cantar. Mas ele só
falava sobre tocar bateria e mudar para Nova York depois da formatura e sobre os contratos
de gravação que provavelmente jamais aconteceriam. E quando digo provavelmente, quero
dizer que ele tinha mais chance de fazer uma cesta de três pontos vendado e bêbado do
estacionamento do ginásio.
Link não ia para a faculdade, mas ele ainda estava um passo à minha frente. Ele sabia o que
queria fazer, mesmo sendo algo improvável. Tudo que eu tinha era uma caixa de sapatos cheia
de livretos de faculdades que eu não podia mostrar para meu pai. Eu não me importava com
qual faculdade fosse, desde que fosse pelo menos a uns 1.500 quilômetros de Gatlin.
Eu não queria terminar como meu pai, morando na mesma casa, na mesma cidade pequena em
que cresci, com as mesmas pessoas que nunca sonharam em sair daqui.
Ao nosso redor casas vitorianas velhas e encharcadas ladeavam a rua, quase iguais ao dia em
que tinham sido construídas há mais de 100 anos. Minha rua se chamava Cotton Bend porque
essas velhas casas costumavam ter na parte de trás quilômetros de campos de plantação de
algodão. Agora davam para a autoestrada 9, que era provavelmente a única coisa que tinha mudado aqui Peguei um donut velho da caixa que estava no chão do carro.
— Você fez upload de uma música esquisita no meu iPod ontem à noite?
— Que música? O que acha dessa aqui? — Link aumentou o som da mais recente faixa demo
da banda.
— Acho que precisa ser trabalhada. Como todas suas outras músicas. —
Era a mais ou menos mesma coisa que eu dizia todo dia.
— É, seu rosto vai precisar ser trabalhado depois que eu der umas porradas em você. — Era
mais ou menos a mesma coisa que ele dizia todo dia.
Dei uma olhada na minha lista de músicas.
— A tal música, acho que o nome era algo do tipo "Dezesseis Luas".
— Não sei do que está falando. — Não estava lá. A música havia sumido, mas eu acabara de
ouvi-la naquela manhã. E sabia que não tinha imaginado porque ela ainda estava na minha
cabeça.
— Se você quer ouvir uma música, vou botar uma nova. — Link olhou para baixo para
encontrar a música.
— Ei, cara, olhe para frente.
Mas ele não ergueu o olhar, e com o canto do meu olho, vi um estranho carro passar na frente
do nosso...
Por um segundo, os sons da rua e da chuva e de Link se dissolveram no silêncio, e era como se
tudo estivesse se movendo em câmera lenta. Eu não conseguia desgrudar os olhos do carro.
Era só uma sensação, não uma coisa que conseguisse descrever. E então ele passou por nós,
virando em outra direção.
Não reconheci o carro. Nunca o tinha visto antes. Vocês não podem imaginar o quanto isso é
impossível, porque eu conhecia cada carro na cidade. Não havia turistas nessa época do ano.
Ninguém se arriscaria na temporada de furacões.
Esse carro era longo e preto, como um rabecão. Na verdade, eu estava bem certo de que era
um rabecão.
Talvez fosse um presságio. Talvez esse ano fosse ser pior do que eu pensava.
— Aqui está. "Bandana Negra." Essa música vai me tornar famoso.
Quando ele voltou a olhar para a frente, o carro tinha ido embora.

Capítulo 3 talvez seja postado amanhã ou depois de amanhã.

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