Um Buraco No Ceu

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Frango frito, purê de batata com molho, vagem e pão — o prato, frio e raivoso sobre o fogão
onde Amma tinha deixado. Normalmente ela F mantinha meu jantar quente até que eu chegasse
do treino, mas hoje não. Eu estava muito encrencado. Amma estava furiosa, sentada à mesa
comendo balinhas de canela e rabiscando nas palavras cruzadas do New York Times. Meu pai
assinava escondido a edição de domingo porque as palavras cruzadas do The Stars and
Stripes tinham muitos erros de ortografia e as do Readers Digest eram pequenas demais. Não
sei como ele conseguia fazer sem que Carlton Eaton percebesse, pois ele teria feito a cidade
inteira saber que éramos bons demais para o The Stars and Stripes. Mas não havia nada que
meu pai não fizesse por Amma.
Ela deslizou o prato na minha direção, olhando para mim sem olhar para mim. Enfiei purê de
batata e frango frios na boca. Não havia nada que Amma odiasse mais do que comida deixada
no prato. Tentei manter distância da ponta do seu lápis especial número dois, usado apenas
para palavras cruzadas e mantido tão apontado que poderia ferir a ponto de sangrar. Hoje, era
possível.
Escutei o barulho ininterrupto da chuva no telhado. Não havia nenhum outro som na cozinha.
Amma bateu o lápis na mesa.
— Oito letras. Confinar ou provocar dor devido a um erro cometido.
Ela me lançou outro olhar. Enchi a boca de purê de batata. Eu sabia o que estava a caminho.
Nove horizontal.
— C-A-S-T-I-G-A-R. O que quer dizer punir. O que quer dizer que se não consegue chegar na
escola na hora, não vai sair dessa casa.
Fiquei pensando sobre quem tinha ligado para informá-la de que eu chegara atrasado, ou o
mais provável, quem não tinha ligado. Ela apontou o lápis apesar de ele estar ainda de ponta
fina, enfiando-o no velho apontador automático na bancada. Ela ainda estava claramente "não-
olhando" para mim, o que era bem pior do que me olhar nos olhos.
Andei até onde ela estava apontando o lápis e passei meu braço em torno dela, dando-lhe um
bom aperto.
— Pare com isso, Amma. Não fique zangada. Estava chovendo forte de manhã. Você não ia
querer que corrêssemos na chuva, não é?
Ela ergueu uma sobrancelha, mas a expressão se amenizou.
— Bem, parece que vai continuar chovendo de agora até o dia em que você cortar esse
cabelo, então é melhor você pensar em um jeito de chegar à escola antes que o sinal toque.
— Sim, senhora. — Apertei-a mais uma vez e voltei para meu purê frio.
— Você nunca vai acreditar no que aconteceu hoje. Tem uma garota nova na nossa turma. —
Não sei por que eu disse aquilo. Acho que ainda estava na minha cabeça.
— Acha que não sei sobre Lena Duchannes?
Engasguei com o pão. Lena Duchannes. Podia rimar com rain. O modo como Amma falou fez
parecer que a palavra tinha uma sílaba a mais. Du-kay-yane.
— É esse o nome dela? Lena?
Amma empurrou um copo de achocolatado em minha direção.
— É e não, e não é da sua conta. Você não devia se meter com coisas das quais não sabe nada,
Ethan Wate.
Amma sempre falava em código e nunca oferecia mais do que isso. Eu não ia à casa dela em
Waders Creek desde que era criança, mas sabia que a maioria das pessoas da cidade ia.
Amma era a leitora de tarô mais respeitada num perímetro de 160 quilômetros de Gatlin,
assim como a mãe dela antes dela e a avó dela antes da mãe. Seis gerações de videntes. Gatlin
estava cheia de batistas tementes a Deus, metodistas e pentecostais, mas eles não conseguiam
resistir à atração das cartas, da possibilidade de mudar o curso do próprio destino. Porque era
isso que eles acreditavam que uma poderosa vidente podia fazer. E Amma era uma grande força com a qual contar.
Às vezes eu encontrava um dos seus amuletos caseiros na minha gaveta de meias ou pendurado
sobre a porta do escritório do meu pai. Só perguntei para que eles serviam uma vez. Meu pai
provocava Amma sempre que achava um, mas percebi que ele nunca os removia. "Melhor
prevenir do que remediar." Acho que ele queria dizer se prevenir de Amma, que podia fazer
você precisar se remediar.
— Ouviu mais alguma coisa sobre ela?
— Cuidado. Um dia você vai fazer um buraco no céu e o universo vai cair por ele. Aí todos
nós estaremos com problemas.
Meu pai entrou na cozinha de pijama. Ele se serviu de uma xícara de café e pegou uma caixa
de cereal de trigo da despensa. Dava para ver os tampões amarelos ainda enfiados nas orelhas
dele. O cereal significava que o dia dele estava começando. Os tampões significavam que
ainda não tinha começado de verdade.
Me inclinei e sussurrei para Amma:
— O que você ouviu?
Ela pegou meu prato com força e o levou para a pia. Lavou uns ossos que pareciam de porco,
o que era estranho, já que a comida tinha sido frango, e os colocou em um prato.
— Isso não é da sua conta. O que eu gostaria de saber é por que você está tão interessado.
Encolhi os ombros.
— Na verdade, não estou. Só curioso.
— Você sabe o que dizem sobre curiosidade.
Ela enfiou um garfo no meu pedaço de torta de creme. Depois se virou para mim, dando
Aquele Olhar e saiu. Até meu pai reparou na porta da cozinha balançando depois que ela saiu
e puxou um tampão do ouvido.
— Como foi a escola?
— Bem.
— O que você fez a Amma?
— Cheguei atrasado à escola.
Ele observou meu rosto. Observei o dele.
— Número dois?
Assenti.
— Apontado?
— Já estava apontado mas ela o apontou mais. — Suspirei.
Meu pai quase sorriu, o que era coisa rara. Senti uma onda de alívio, talvez até de ter
conseguido uma façanha.
— Sabe quantas vezes sentei a essa mesa velha enquanto ela me ameaçava com um lápis
quando eu era criança? — perguntou ele, apesar de não ser exatamente uma pergunta. A mesa,
lascada e manchada com tinta, cola e caneta de todos os Wate que vieram antes de mim, era
uma das coisas mais velhas da casa.
Sorri. Meu pai pegou a tigela de cereal e balançou a colher na minha direção. Amma tinha
criado meu pai, um fato do qual eu era lembrado cada vez que pensava em ser insolente com
ela quando criança.
— M-I-R-I-A-D-E. — Ele soletrou a palavra enquanto colocava a tigela na pia. — P-L-E-T-
O-R-A. O que quer dizer maior do que você, Ethan Wate.
Quando ele chegou embaixo da luz da cozinha, o meio-sorriso se reduziu a um quarto e depois
sumiu. Ele parecia ainda pior que o normal. As sombras no rosto estavam mais escuras, e
dava para ver os ossos embaixo da pele. O
rosto estava verde de tão pálido por nunca sair de casa. Ele parecia um pouco com um
cadáver vivo, já havia alguns meses. Era difícil lembrar que ele era a mesma pessoa que
costumava sentar comigo por horas na beira do lago Moultrie, comendo sanduíche de salada
de galinha e me ensinando como jogar a linha de pesca. "Para a frente e para trás. Dez e duas.
Dez e duas.
Como os ponteiros do relógio." Os últimos cinco meses foram difíceis para ele. Ele amava
mesmo minha mãe. Mas eu também amava.
Meu pai pegou o café e começou a andar em direção ao escritório. Era hora de encarar os
fatos. Talvez Macon Ravenwood não fosse o único recluso da cidade. Eu achava que nossa
cidade não era grande o bastante para dois Boo Radley. Mas isso tinha sido o mais próximo
de uma conversa que nós tínhamos tido em meses, e eu não queria que ele fosse embora.
— Como está indo o livro? — soltei. Fique e converse comigo. Era o que queria dizer.
Ele pareceu surpreso, mas deu de ombros.
— Está indo. Ainda tenho muito trabalho a fazer. — Ele não conseguia.Era o que ele queria dizer.
— A sobrinha de Macon Ravenwood acabou de se mudar para cá. —
Falei essas palavras quando ele tinha colocado os tampões de volta. Fora de sincronia, nosso
modo habitual. Pensando melhor, minha sincronia com a maioria das pessoas tinha sido assim
ultimamente.
Meu pai tirou um tampão, suspirou e tirou o outro.
— O quê?
Ele já estava andando de volta para o escritório. O cronômetro da nossa conversa estava
quase zerado.
— Macon Ravenwood, o que sabe sobre ele?
— O mesmo que todo mundo, acho. Ele é um recluso. Não sai de casa há anos, pelo que sei.
Ele empurrou a porta do escritório e passou por ela, mas não o segui.
Fiquei em frente à porta.
Nunca coloquei o pé lá. Uma vez, só uma, quando eu tinha 7 anos, meu pai me pegou lendo o
livro dele antes de ter terminado de revisar. O
escritório era um lugar escuro e assustador. Tinha um quadro que ele sempre mantinha coberto
com um lençol sobre o esfarrapado sofá vitoriano. Eu sabia que não deveria nunca perguntar o
que havia embaixo do lençol. Depois do sofá, perto da janela, ficava a escrivaninha do meu
pai. Era de mogno entalhado, outra antiguidade que tinha sido herdada junto com a casa,
passada de geração em geração. E livros, velhos livros de capas de couro que eram tão
pesados que ficavam apoiados sobre um suporte de madeira quando estavam abertos. Aquelas
eram as coisas que nos prendiam a Gatlin, nos prendiam a Wates Landing, assim como tinham
prendido meus ancestrais por mais de cem anos.
Sobre a escrivaninha estava o manuscrito dele. Estava lá em uma caixa de papelão aberta, e eu
tinha que saber o que dizia. Meu pai escrevia terror gótico, então não havia muito que ele
escrevesse que fosse apropriado para um menino de 7 anos ler. Mas cada casa em Gatlin era
cheia de segredos, assim como o próprio sul, e minha casa não era exceção, mesmo naquela
época.
Meu pai me encontrou sentado no sofá do escritório com páginas espalhadas em volta de mim,
como se uma bombinha tivesse explodido dentro da caixa. Eu não era esperto o bastante para
disfarçar os vestígios que deixava, coisa que aprendi rapidamente depois daquilo. Só me
lembro dele gritando comigo e de minha mãe ir atrás de mim e me encontrar chorando embaixo da velha árvore de magnólias no nosso quintal. "Algumas coisas são particulares,
Ethan. Até mesmo para adultos."
Eu só queria saber. Esse sempre foi o meu problema. Até mesmo agora.
Queria saber por que meu pai nunca saía do escritório. Queria saber por que não podíamos
deixar essa velha casa insignificante só porque um milhão de Wates tinham morado aqui antes
de nós, principalmente agora que minha mãe não estava mais aqui.
Mas não essa noite. Essa noite eu só queria me lembrar dos sanduíches de salada de galinha e
"dez e duas" e de uma época em que meu pai comia o cereal na cozinha, brincando comigo.
Adormeci lembrando.
Antes que o sinal tivesse tocado no dia seguinte, Lena Duchannes era o único assunto sobre o
qual todo mundo falava na Jackson. De alguma forma, entre tempestades e apagões, Loretta
Snow e Eugenie Asher, mães de Savannah e Emily, tinham conseguido botar o jantar na mesa e
ligar para todo mundo na cidade para contar que a "parenta" do louco Macon Ravenwood
estava dirigindo por Gatlin no rabecão dele, o qual elas tinham certeza que ele usava para
transportar cadáveres quando ninguém estava vendo. A partir daí a história só piorou. Há duas
coisas com as quais sempre podemos contar em Gatlin. A primeira é que você pode ser
diferente, até louco, desde que saia de casa de vez em quando para que o pessoal não pense
que você é um assassino da machadinha. A segunda, se há uma história para contar, pode ter
certeza que haverá alguém para contá-la. Uma garota nova na cidade foi morar na mansão mal-
assombrada com o recluso da cidade, isso é uma história, provavelmente a maior em Gatlin
desde o acidente de minha mãe. Então não sei por que fiquei surpreso quando todos estavam
falando sobre ela — todos menos os caras. Eles tinham um compromisso antes.
— E então, o que temos, Em? — Link bateu a porta do armário.
— Contando os testes para líderes de torcida, parece que temos quatro notas 8, três notas 7 e
um bando de notas 4. — Emory não se deu ao trabalho de contar as garotas do 1º ano que ele
avaliou com nota abaixo de 4.
Bati a porta do meu armário.
— Isso é novidade? Não são as mesmas garotas que vemos no Dar-ee Keen todo sábado?
Emory sorriu e deu um tapinha no meu ombro.
— Mas elas estão no jogo agora, Wate. — Ele olhou para as garotas no corredor. — E estou
pronto para jogar.Emory falava mais do que fazia. Ano passado, quando éramos do 1º ano, só o ouvíamos
falando das formandas gatas com quem ele achava que ia ficar agora. Ele era tão iludido
quanto Link, mas não tão inofensivo. Emory tinha um traço cruel; todos os Watkins tinham.
Shawn sacudiu a cabeça.
— Como colher pêssegos do arbusto.
— Pêssegos dão em árvores.
Eu já estava irritado, talvez porque já tivesse encontrado os caras na seção de revistas do
Pare & Roube antes da aula me sujeitando a essa mesma conversa enquanto Earl folheava
exemplares da única coisa que ele lia: revistas com garotas de biquíni deitadas sobre capôs
de carros.
Shawn olhou para mim, confuso.
— De que você está falando?
Nem sei por que me importava. Era uma conversa idiota, assim como era idiota que todos os
caras tivessem que se encontrar antes da escola às quartas de manhã. Era uma coisa que eu
passei a encarar como bater ponto.
Algumas coisas eram esperadas quando se estava no time. Sentávamos juntos no refeitório.
íamos às festas de Savannah Snow, convidávamos uma líder de torcida para nos acompanhar
nos bailes, ficávamos de bobeira no lago Moultrie no último dia de aula. Era possível escapar
de quase tudo se a gente batesse ponto. Só que para mim estava ficando cada vez mais difícil
bater ponto, e eu não sabia por quê.
Eu ainda não tinha dado uma resposta quando a vi.
Mesmo que não a tivesse visto, eu saberia que ela estava lá porque o corredor, que geralmente
ficava cheio de gente correndo para seus armários e tentando chegar às aulas antes do segundo
sinal, esvaziou em questão de segundos. Todo mundo deu um passo para trás quando ela andou
pelo corredor. Como se ela fosse uma estrela do rock.
Ou uma leprosa.
Mas eu só conseguia ver uma garota bonita de vestido longo cinza sob um casaco esporte
branco com a palavra Munique costurada e um Ali Star surrado preto nos pés. Uma garota que
usava um cordão longo prateado em volta do pescoço, com um monte de coisas penduradas:
um anel de plástico de uma máquina de chicletes, um alfinete e um bando de outras coisas que
eu estava longe demais para ver. Uma garota que não parecia pertencer a Gatlin. Eu não
conseguia tirar os olhos dela.
A sobrinha de Macon Ravenwood. O que havia de errado comigo?embaixo da velha árvore de magnólias no nosso quintal. "Algumas coisas são particulares,
Ethan. Até mesmo para adultos."
Eu só queria saber. Esse sempre foi o meu problema. Até mesmo agora.
Queria saber por que meu pai nunca saía do escritório. Queria saber por que não podíamos
deixar essa velha casa insignificante só porque um milhão de Wates tinham morado aqui antes
de nós, principalmente agora que minha mãe não estava mais aqui.
Mas não essa noite. Essa noite eu só queria me lembrar dos sanduíches de salada de galinha e
"dez e duas" e de uma época em que meu pai comia o cereal na cozinha, brincando comigo.
Adormeci lembrando.
Antes que o sinal tivesse tocado no dia seguinte, Lena Duchannes era o único assunto sobre o
qual todo mundo falava na Jackson. De alguma forma, entre tempestades e apagões, Loretta
Snow e Eugenie Asher, mães de Savannah e Emily, tinham conseguido botar o jantar na mesa e
ligar para todo mundo na cidade para contar que a "parenta" do louco Macon Ravenwood
estava dirigindo por Gatlin no rabecão dele, o qual elas tinham certeza que ele usava para
transportar cadáveres quando ninguém estava vendo. A partir daí a história só piorou. Há duas
coisas com as quais sempre podemos contar em Gatlin. A primeira é que você pode ser
diferente, até louco, desde que saia de casa de vez em quando para que o pessoal não pense
que você é um assassino da machadinha. A segunda, se há uma história para contar, pode ter
certeza que haverá alguém para contá-la. Uma garota nova na cidade foi morar na mansão mal-
assombrada com o recluso da cidade, isso é uma história, provavelmente a maior em Gatlin
desde o acidente de minha mãe. Então não sei por que fiquei surpreso quando todos estavam
falando sobre ela — todos menos os caras. Eles tinham um compromisso antes.
— E então, o que temos, Em? — Link bateu a porta do armário.
— Contando os testes para líderes de torcida, parece que temos quatro notas 8, três notas 7 e
um bando de notas 4. — Emory não se deu ao trabalho de contar as garotas do 1º ano que ele
avaliou com nota abaixo de 4.
Bati a porta do meu armário.
— Isso é novidade? Não são as mesmas garotas que vemos no Dar-ee Keen todo sábado?
Emory sorriu e deu um tapinha no meu ombro.
— Mas elas estão no jogo agora, Wate. — Ele olhou para as garotas no corredor. — E estou
pronto para jogar.
Emory falava mais do que fazia. Ano passado, quando éramos do 1º ano, só o ouvíamos
falando das formandas gatas com quem ele achava que ia ficar agora. Ele era tão iludido
quanto Link, mas não tão inofensivo. Emory tinha um traço cruel; todos os Watkins tinham.
Shawn sacudiu a cabeça.
— Como colher pêssegos do arbusto.
— Pêssegos dão em árvores.
Eu já estava irritado, talvez porque já tivesse encontrado os caras na seção de revistas do
Pare & Roube antes da aula me sujeitando a essa mesma conversa enquanto Earl folheava
exemplares da única coisa que ele lia: revistas com garotas de biquíni deitadas sobre capôs
de carros.
Shawn olhou para mim, confuso.
— De que você está falando?
Nem sei por que me importava. Era uma conversa idiota, assim como era idiota que todos os
caras tivessem que se encontrar antes da escola às quartas de manhã. Era uma coisa que eu
passei a encarar como bater ponto.
Algumas coisas eram esperadas quando se estava no time. Sentávamos juntos no refeitório.
íamos às festas de Savannah Snow, convidávamos uma líder de torcida para nos acompanhar
nos bailes, ficávamos de bobeira no lago Moultrie no último dia de aula. Era possível escapar
de quase tudo se a gente batesse ponto. Só que para mim estava ficando cada vez mais difícil
bater ponto, e eu não sabia por quê.
Eu ainda não tinha dado uma resposta quando a vi.
Mesmo que não a tivesse visto, eu saberia que ela estava lá porque o corredor, que geralmente
ficava cheio de gente correndo para seus armários e tentando chegar às aulas antes do segundo
sinal, esvaziou em questão de segundos. Todo mundo deu um passo para trás quando ela andou
pelo corredor. Como se ela fosse uma estrela do rock.
Ou uma leprosa.
Mas eu só conseguia ver uma garota bonita de vestido longo cinza sob um casaco esporte
branco com a palavra Munique costurada e um Ali Star surrado preto nos pés. Uma garota que
usava um cordão longo prateado em volta do pescoço, com um monte de coisas penduradas:
um anel de plástico de uma máquina de chicletes, um alfinete e um bando de outras coisas que
eu estava longe demais para ver. Uma garota que não parecia pertencer a Gatlin. Eu não
conseguia tirar os olhos dela.
A sobrinha de Macon Ravenwood. O que havia de errado comigo? Ela prendeu os cachos pretos atrás da orelha, o esmalte preto brilhando sob a luz fluorescente.
As mãos estavam cobertas de tinta preta, como se ela tivesse escrito algo nelas. Andou pelo
corredor como se nós fôssemos invisíveis. Tinha os olhos mais verdes que eu já vira, tão
verdes que podiam ser considerados de uma nova cor.
— É, ela é gata — disse Billy.
Eu sabia em que eles estavam pensando. Por um segundo, pensaram em largar as namoradas
pela chance de dar em cima dela. Por um segundo, ela foi uma possibilidade.
Earl a olhou de cima a baixo e bateu a porta do armário.
— Se você ignorar o fato de que ela é esquisita.
Havia alguma coisa no jeito que ele falou isso, ou mais provavelmente, na razão pela qual ele
falou. Ela era esquisita porque não era de Gatlin, porque não estava tentando entrar na equipe
de líderes de torcida, porque não tinha olhado para ele duas vezes, ou nem mesmo uma. Em
qualquer outro dia, eu o teria ignorado e ficado de boca fechada, mas hoje eu não estava com
vontade de ficar calado.
— Então ela é automaticamente esquisita, e por quê? Porque ela não está de uniforme, cabelo
louro e saia curta?
Era fácil de ler o rosto de Earl. Essa era uma daquelas vezes em que eu deveria ter seguido a
opinião dele, e eu não estava mantendo minha parte do nosso acordo não-verbal.
— Porque ela é uma Ravenwood.
A mensagem foi clara. Gata, mas nem pense nisso. Ela não era mais uma possibilidade. Mas
isso não os impediu de olhar, e todos ainda estavam olhando. O corredor, e todo mundo nele,
tinha travado o olhar nela como se ela fosse um cervo preso entre caçadores.
Mas ela apenas continuou andando, o cordão balançando em torno do
pescoço.
Minutos depois, eu estava parado na porta da minha aula de inglês. Lá estava ela. Lena
Duchannes. A garota nova, que ainda seria chamada assim cinquenta anos mais tarde (isso se
não fosse chamada de sobrinha do Velho Ravenwood), entregando uma folha cor-de-rosa de
transferência para a Sra.
English, que apertou os olhos para ler.— Fizeram uma confusão com meu horário e eu não tinha aula de Inglês
— estava dizendo ela. — Eu tinha História Americana em dois tempos, e eu já estudei
História Americana na minha escola antiga. — Ela parecia frustrada, e eu tentei não sorrir. Ela
nunca tinha tido aula de História Americana, não do jeito que o Sr. Lee ensina.
— É claro. Escolha seu lugar.
A Sra. English deu a ela um exemplar de O Sol é para Todos. O livro parecia nunca ter sido
aberto, o que provavelmente era verdade já que fizeram um filme baseado nele.
A garota nova olhou para a frente e me pegou observando-a. Olhei para o outro lado, mas era
tarde demais. Tentei não sorrir, mas fiquei sem graça, e isso só me fez sorrir mais. Ela não
pareceu perceber.
— Tudo bem, eu trouxe o meu. — Ela pegou um exemplar do livro, de capa dura, com uma
árvore entalhada na capa. Parecia bastante velho e gasto, como se ela o tivesse lido mais de
uma vez. — É um dos meus livros favoritos. — Ela apenas comentou, como se não fosse
estranho. Agora eu a estava encarando.
Senti um rolo compressor nas minhas costas e Emily me empurrou pela porta como se eu não
estivesse de pé ali. Esse era o jeito dela de dizer oi e de esperar que eu a seguisse até o fundo
da sala, onde nossos amigos estavam sentados.
A garota nova sentou em um lugar vazio na primeira fila, na Terra de Ninguém, em frente à
mesa da Sra. English. Movimento errado. Todo mundo sabia que não se deve sentar ali. A Sra.
English tinha um olho de vidro, e a péssima audição de alguém cuja família tem o único
estande de tiro da região. Quem se sentava em qualquer lugar que não fosse em frente à mesa
dela não era visto, portanto não era solicitado. Lena ia ter que responder perguntas pela turma
inteira.
Emily pareceu contente e mudou o caminho para passar pelo lugar dela, chutando a bolsa de
Lena e fazendo com que os livros dela se espalhassem pelo corredor entre as fileiras.
— Ops. — Emily se abaixou e pegou um caderno espiral surrado que estava quase perdendo a
capa. Ela o segurou como se fosse um rato morto. —
Lena Duchannes. É esse seu nome? Pensei que fosse Ravenwood.
Lena olhou para o alto, lentamente.
— Pode me dar meu caderno?
Emily folheou as páginas como se não tivesse ouvido.
— É seu diário? Você é escritora? Isso é tão legal.
Lena esticou a mão.
— Por favor.
Emily fechou o caderno e o afastou dela.
— Posso pegar isso emprestado por um minuto? Eu adoraria ler alguma coisa que você
escreveu.
— Eu queria de volta agora. Por favor. — Lena ficou de pé. As coisas iam ficar interessantes.
A sobrinha do Velho Ravenwood estava prestes a se enfiar no tipo de buraco do qual ninguém
conseguia sair, a memória de Emily era excelente.
— Primeiro você teria que saber ler. — Peguei o caderno da mão de Emily e o entreguei a
Lena.
Depois sentei na carteira ao lado da dela, bem ali na Terra de Ninguém.
O Lado do Olho Bom. Emily me encarou, incrédula. Eu não sabia por que tinha feito aquilo.
Estava tão chocado quanto ela. Nunca tinha sentado na frente em nenhuma aula na minha vida.
O sinal tocou antes que Emily pudesse dizer alguma coisa, mas não importava; eu sabia que
pagaria por aquilo mais tarde. Lena abriu o caderno e ignorou nós dois.
— Podemos começar, pessoal? — A Sra. English olhou da mesa para nós.
Emily foi para o lugar habitual no fundo da sala, longe o bastante da frente para que não
tivesse que responder pergunta alguma o ano todo, longe o bastante da sobrinha do Velho
Ravenwood. E agora, longe o bastante
de mim. Isso dava uma sensação libertadora, mesmo se eu tivesse que analisar o
relacionamento de Jem e Scout por cinquenta minutos sem ter lido o capítulo.
Quando o sinal tocou, me virei para Lena. Não sei o que eu pensava que podia dizer. Talvez
estivesse esperando que ela me agradecesse. Mas ela não disse nada enquanto enfiava os
livros de volta na bolsa.
156. Não era uma palavra que estava escrita em sua mão.
Era um número.
Lena Duchannes não falou comigo de novo, nem naquele dia, nem naquela semana. Mas isso
não me impediu de pensar nela e nem de vê-la em praticamente todo lugar para onde eu
tentava não olhar. Não era apenas ela que estava me incomodando, para dizer a verdade. Não era a sua aparência
— Lena era bonita, apesar de ela estar sempre usando as roupas erradas e aquele tênis
surrado. Não eram as coisas que ela dizia na aula, normalmente coisas em que ninguém mais
teria pensado, e que, se tivessem pensado, era algo que não ousariam dizer. Não era o fato
dela ser diferente de todas as outras garotas da Jackson. Isso era óbvio.
Era que ela me fez perceber o quanto eu era como os outros, mesmo quando eu queria fingir
que não era.
Tinha chovido o dia todo, e eu estava sentado na aula de cerâmica, também conhecida como
AG, "A garantido", já que a nota dessa aula só dependia do esforço. Eu tinha me matriculado
em cerâmica na primavera porque tinha que preencher a exigência de ter aulas de artes no
currículo, e estava desesperado para ficar longe da banda, que praticava fazendo muito
barulho no andar de baixo sob a liderança da enlouquecida magricela e empolgada ao
extremo, Srta. Spider. Savannah estava sentada ao meu lado.
Eu era o único homem da turma, e como era homem, não tinha ideia do que deveria fazer.
— Hoje se trata de experimentação. Vocês não serão avaliados por isso.
Sintam a argila. Libertem a mente. E ignorem a música que vem de baixo. —
A Sra. Abernathy fez uma careta enquanto a banda assassinava algo que '
parecia com "Dixie". — Busquem bem fundo. Sintam o caminho até a alma.
Liguei o torno de oleiro e olhei para a argila enquanto ela começou a girar na minha frente.
Suspirei. Isso era quase tão ruim quanto a banda, então, quando a sala foi ficando em silêncio
e o barulho dos tornos de oleiro se sobrepôs à falação das fileiras de trás, a música do andar
de baixo mudou.
Ouvi um violino, ou talvez um daqueles violinos maiores, acho que se chama viola. Um som
bonito e triste ao mesmo tempo, e era desconcertante. Havia mais talento na voz crua da
música do que a Srta, Spider jamais vera o prazer de conduzir. Olhei à minha volta; ninguém
parecia perceber a música. O som rastejava sob a minha pele. Reconheci a melodia, e em
poucos segundos minha mente conseguiu identificar a letra, tão claramente como se estivesse
ouvindo meu iPod. Mas dessa vez, a letra tinha mudado.
Dezesseis luas, dezesseis anos
Som de trovão nos seus ouvidos
Dezesseis milhas antes que ela se aproxime
Dezesseis procura o que dezesseis teme...
Enquanto eu olhava para a argila que girava na minha frente, a massa virou uma mancha.
Quanto mais eu me concentrava, mais a sala se dissolvia ao meu redor, até que a argila
pareceu estar girando a sala de aula, a mesa e minha cadeira junto. Como se tudo estivesse
ligado nesse redemoinho de movimento constante, ligado ao ritmo da melodia da sala de
música. A sala estava desaparecendo à minha volta. Lentamente, estiquei a mão e passei a
ponta de um dedo pela argila.
Depois um brilho, e a sala que girava se dissolveu em outra imagem...
Eu estava caindo.
Nós estávamos caindo.
Eu estava de volta ao sonho. Vi a mão dela. Vi minha mão agarrar a dela, meus dedos
afundando em sua pele, no pulso, em uma tentativa desesperada de segurá-la. Mas ela estava
escorregando; eu podia sentir, os dedos passando para minha mão.
— Não solte!
Eu queria ajudá-la, queria segurar. Mais do que jamais quis alguma coisa. E então ela
escorregou pelos meus dedos...
— Ethan, o que está fazendo? — A Sra. Abernathy parecia preocupada.
Abri meus olhos e tentei me concentrar, me trazer de volta. Eu vinha tendo os sonhos desde
que minha mãe morreu, mas essa era a primeira vez que eu tinha um durante o dia. Olhei para
minha mão cinza e enlameada, coberta de argila seca. A argila no torno de oleiro trazia a
marca perfeita de uma mão, como se eu tivesse acabado de achatar seja o que for que eu
estivesse fazendo. Olhei mais de perto, A mão não era minha, era pequena demais. Era de uma
garota.
Era dela.
Olhei embaixo das minhas unhas, onde dava para ver a argila que eu tinha raspado do pulso
dela.
— Ethan, você podia ao menos tentar fazer alguma coisa.
A Sra. Abernathy colocou a mão sobre meu ombro e dei um pulo. Do lado de fora da janela da
sala de aula, ouvi o roncar de trovões.
— Mas, Sra. Abernathy, acho que a alma de Ethan está se comunicando com ele. — Savannah
riu, se inclinando para dar uma boa olhada. — Acho que ela está dizendo pra você fazer as
unhas, Ethan.
As garotas ao meu redor começaram a rir. Esmaguei a marca da mão ora o punho,transformando-a num monte de nada cinza. Fiquei de pé e limpei as mãos no jeans quando o
sinal tocou. Peguei minha mochila e saí rápido da saia, escorregando nos meus tênis de cano
alto molhados quando virei no corredor e quase tropeçando nos cadarços desamarrados ao
correr elos dois lances de escada que me separavam da sala de música. Eu tinha que saber se
tinha imaginado.
Empurrei a porta dupla da sala de música com as duas mãos. O palco tava vazio. A turma
passava por mim. Eu estava indo na direção errada, caminhando contra a corrente enquanto
todo mundo tentava sair. Respirei do, mas sabia que cheiro iria sentir antes mesmo que o
sentisse.
Limão e alecrim.
No canto do palco, a Srta. Spider estava recolhendo as partituras espalhadas sobre as cadeiras
dobráveis que ela usava para a lamentável orquestra da Jackson. Eu a chamei.
— Com licença, professora. Quem estava tocando aquela... aquela música?
Ela sorriu para mim.
— Tivemos uma maravilhosa aquisição para nossa seção de cordas. Uma viola. Ela acabou de
se mudar para a cidade...
Não. Não podia ser. Não ela.
Me virei e corri antes que ela pudesse dizer o nome.
Quando o sinal do oitavo tempo tocou, Link estava esperando por mim em frente ao vestiário.
Ele passou a mão pelo cabelo espetado e esticou a camiseta desbotada do Black Sabbath.
— Link. Preciso da sua chave, cara.
— E o treino?
— Não posso ir. Tem uma coisa que preciso fazer.
— Cara, do que você está falando?
— Só preciso da sua chave.
Eu tinha que sair dali. Estava tendo sonhos, ouvindo música, e agora apagando no meio da
aula, se é que pode se chamar assim. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo, mas
sabia que era ruim.
Se minha mãe ainda estivesse viva, eu provavelmente teria contado tudo para ela. Ela era
assim, eu podia contar qualquer coisa. Mas ela se foi, e meu pai estava enfiado no escritório o
tempo todo, e Amma jogaria sal no meu quarto inteiro durante um mês se eu contasse para ela.
Eu estava sozinho.
Link me entregou a chave.
— O treinador vai te matar.
— Eu sei.
— E Amma vai descobrir.
— Eu sei.
— E ela vai chutar sua bunda daqui até County Line. — A mão dele vacilou quando eu peguei
a chave. — Não seja burro.
Me virei e corri. Tarde demais.

Toma na pressa então desculpa se tiver algum erro de português

Dezesseis LuasOnde histórias criam vida. Descubra agora