Quando cheguei ao carro, eu estava encharcado. Os sinais de tempestade Q manifestaram-se ao
longo de toda a semana. Havia um alerta sobre o tempo em todas as estações de rádio que eu
conseguia pegar, o que não era muito, considerando que o Lata-Velha só pegava três estações,
todas AM.
^s nuvens estavam totalmente pretas, e como estávamos na temporada de rações, isso não era
algo a ser visto com descaso. Mas não importava. Eu precisava espairecer minha cabeça e
entender o que estava acontecendo, mesmo sem ter ideia de onde eu estava indo.
Tive que ligar os faróis até para sair do estacionamento. Não dava para ver mais do que um
metro a frente. Não era um dia bom para se dirigir. Um relâmpago cruzou o céu escuro à minha
frente. Contei, como Amma ia me ensinado há anos: um, dois, três. O trovão soou, o que
significava que a tempestade não estava longe. Cinco quilômetros, de acordo com os cálculos
de Amma.
Parei no sinal em frente à Jackson, um dos apenas três da cidade. Eu não lha ideia do que
fazer. A chuva despencou sobre o Lata-Velha. A rádio foi reduzida à estática, mas ouvi uma
coisa. Aumentei o volume e a música inundou o carro pelos alto-falantes vagabundos.Dezesseis Luas.
A música que tinha desaparecido da minha lista do iPod. A música que mais ninguém parecia
ouvir. A música que Lena Duchannes tinha tocado na viola. A música que estava me
enlouquecendo.
A luz ficou verde e o Lata-Velha seguiu em frente. Eu estava a caminho, e não tinha a menor
ideia de onde estava indo.
Um relâmpago partiu o céu. Contei: um, dois. A tempestade estava se aproximando. Liguei os
limpadores de para-brisa. Não fez a menor diferença.
Eu não conseguia ver nem até a metade do quarteirão. Um relâmpago piscou. Contei: um. O
trovão rugiu sobre o teto do Lata-Velha e a chuva ficou horizontal. O para-brisa chacoalhou
como se pudesse ceder a qualquer momento, o que, considerando a condição do carro, poderia
ter acontecido.
Eu não estava caçando a tempestade. A tempestade estava me caçando, e tinha me encontrado.
Eu mal conseguia manter as rodas na pista escorregadia, e o Lata-Velha começou a sambar,
deslizando erraticamente de um lado a outro das duas pistas da autoestrada 9.
Eu não conseguia ver nada. Pisei no freio, girando na escuridão. Os faróis piscaram por
apenas um segundo, e um par de enormes olhos verdes olharam para mim do meio da rua. A
princípio pensei que fosse um cervo, mas estava enganado.
Tinha alguém na rua!
Segurei o volante com as duas mãos com toda a força que consegui. Meu corpo bateu contra a
lateral do carro.
A mão dela estava esticada. Fechei meus olhos para o impacto, que nunca aconteceu.
O Lata-Velha parou de repente, não mais do que a um metro de distância. Os faróis formavam
um círculo pálido de luz na chuva, refletindo uma daquelas capas de chuva baratas de plástico
que se pode comprar por três dólares numa farmácia. Era uma garota. Ela puxou o capuz da
cabeça lentamente, deixando a chuva cair no rosto. Olhos verdes, cabelos pretos.
Lena Duchannes.
Eu não conseguia respirar. Sabia que ela tinha olhos verdes; eu os tinha visto antes. Mas hoje
eles pareciam diferentes, diferentes de quaisquer olhos que eu já tinha visto. Estavam enormes
e com um tom verde nada natural, um verde brilhante, como o relâmpago da tempestade. De pé
na chuva daquele jeito, ela quase não parecia humana. Saí cambaleando do Lata-Velha para a
chuva, deixando o motor ligado porta aberta. Nenhum de nós disse uma palavra, parados no
meio da autoestrada 9 no tipo de temporal que só víamos quando tinha um furacão ou uma
tempestade vinda do nordeste.Adrenalina pulsava nas minhas s e meus músculos estavam tensos, como se meu corpo ainda
esperasse batida.
O cabelo de Lena sacudia com vento à sua volta, pingando da chuva.
Dei passo em direção a ela e de repente percebi. Limão molhado. Alecrim molhado.
Imediatamente o sonho começou a voltar, como ondas estourando na minha cabeça. Só que
dessa vez, quando ela escorregava pelos meus os, eu pude ver seu rosto.
Olhos verdes e cabelo preto. Lembrei. Era ela. Ela estava bem na minha 7 frente.
Eu tinha que ter certeza. Peguei o pulso dela. Lá estavam: os pequenos arranhões em formato
de meia-lua, bem onde meus dedos seguraram seu pulso no sonho. Quando toquei nela, uma
onda de eletricidade percorreu seu corpo. Um relâmpago atingiu uma árvore a menos de três
metros de onde estávamos, partindo o tronco quase no meio. Ele começou a soltar fumaça.
— Você é maluco? Ou só é péssimo motorista? — Ela se afastou de mim, olhos verdes
faiscando. De raiva? De alguma coisa.
— É você.
— O que estava tentando fazer, me matar?
— Você é real. — As palavras saíam de um jeito estranho da minha boca, como se ela
estivesse cheia de algodão.
— Quase um cadáver real. Graças a você.
— Não sou maluco. Achei que era, mas não sou. É você. Você está bem na minha frente.
— Não por muito tempo.
Ela deu as costas para mim e começou a subir a rua. Isso não estava acontecendo do jeito que
eu tinha imaginado. Corri para alcançá-la.
— Foi você que apareceu do nada e correu pro meio da rua.
Ela balançou o braço de forma dramática como se estivesse afastando mais do que apenas uma
ideia. Pela primeira vez, vi o longo carro preto nas sombras. O rabecão, de capô levantado.
— Oi? Eu estava procurando alguém para me ajudar, gênio. O carro do meu tio morreu. Você
podia ter passado direto. Não precisava tentar me atropelar.
— Foi você nos sonhos. E a música. Aquela música estranha no meu iPod.
Ela se virou.— Que sonhos? Que música? Você está bêbado ou isso é algum tipo de piada?
— Sei que é você. Você tem as marcas no pulso.
Ela virou a mão e olhou para baixo, confusa.
— Estas? Tenho um cachorro. Pare com isso.
Mas eu sabia que não estava errado. Eu conseguia ver o rosto do meu sonho claramente agora.
Seria possível que ela não soubesse?
Ela puxou o capuz e começou a longa caminhada até Ravenwood na tempestade. Eu a alcancei.
— Vou te dar uma dica. Da próxima vez, não deixe o carro no meio da rua durante uma
tempestade. Ligue para a emergência.
Ela não parou de andar.
— Eu não ia ligar para a polícia. Nem devia estar dirigindo. Só tenho habilitação provisória.
E, de qualquer maneira, meu celular morreu.
Ela obviamente não era daqui. O único jeito de ser parada pela polícia nessa cidade era se
estivesse dirigindo na contramão.
A tempestade estava aumentando. Eu tinha que gritar para ser ouvido sobre o uivo da chuva.
— Deixa eu te levar pra casa. Você não devia estar andando por aqui.
— Não, obrigada. Vou esperar pelo próximo cara que quase vai me atropelar.
— Não vai haver outro cara. Pode demorar horas até alguém chegar.
Ela recomeçou a andar.
— Não tem problema. Vou andando.
Eu não podia deixá-la vagando sozinha na chuva. Minha mãe me criou para ser melhor que
esse tipo de cara.
— Não posso deixar você ir pra casa com esse tempo. — Como se combinado, um trovão
soou sobre nossas cabeças. O capuz dela caiu. — Vou dirigir como minha avó. Vou dirigir
como sua avó.
— Você não diria isso se conhecesse minha avó. — O vento estava aumentando. Agora ela
também estava gritando.
— Vamos.— O quê?
— Para o carro. Entre. Comigo.
Ela olhou para mim, e por um segundo eu não tive certeza se ela ia ceder.
— Acho que é mais seguro do que ir andando. Com você na rua, pelo menos.
O Lata-Velha estava encharcado. Link ia enlouquecer quando visse. A tempestade tinha um
som diferente de dentro do carro, ao mesmo tempo mais alta e mais tranquila. Eu podia ouvir a
chuva caindo no teto, mas o som quase desaparecia com o som do meu coração e dos meus
dentes batendo.
Mexi no câmbio do carro. Eu estava ciente demais de que Lena estava ao meu lado, a apenas
centímetros no banco do passageiro. Dei uma rápida olhada.
Mesmo sendo irritante, ela era bonita. Seus olhos verdes eram enormes, u não conseguia
entender por que pareciam tão diferentes hoje. Ela tinha os cílios mais longos que eu já tinha
visto, e sua pele era clara, e ficava ainda mais clara pelo contraste com o volumoso cabelo
preto. Ela tinha um pequeno sinal marrom de nascença na face bem abaixo do olho esquerdo
—
o formato lembrava uma lua crescente. Ela não se parecia com ninguém da Jackson. Ela não se
parecia com ninguém que eu já tivesse visto. Ela tirou a capa de chuva pela cabeça. A
camiseta preta e o jeans estavam grudados como se ela tivesse caído numa piscina. O colete
pingava sem arar no assento de couro sintético.
— Você está me enc-carando.
Olhei para o outro lado, pela janela, para qualquer lugar menos para ela.
— Você devia tirar isso. Só vai fazer você sentir mais frio.
Pude vê-la lutando com os delicados botões prateados do colete, incapaz de controlar o
tremor das mãos. Estiquei a mão e ela ficou paralisada. Como se eu ousasse tocá-la
novamente.
— Vou aumentar o aquecimento.
Ela voltou aos botões.
— Ob-brigada.
Eu podia ver as mãos dela — tinham mais tinta, agora manchada por causa da chuva. Só
consegui decifrar alguns números. Talvez um ou sete, cinco, dois. 152. O que era aquilo?Dei uma olhada no banco traseiro em busca do cobertor do exército que Link normalmente
deixava lá. Em vez disso, havia um saco de dormir velho, provavelmente da última vez que
Link brigou com os pais e teve que dormir no carro. Tinha cheiro de fumaça velha de
acampamento e mofo de porão.
Entreguei-o a ela.
— Humm. Assim é melhor.
Ela fechou os olhos. Eu podia senti-la relaxar com o calor, e relaxei só em observá-la. O bater
dos dentes dela diminuiu. Depois disso, seguimos em silêncio. O único som era da tempestade
e das rodas girando e espalhando água pelo lago em que a rua tinha se transformado. Ela
desenhou formas na janela embaçada com o dedo. Tentei manter os olhos na estrada, tentei
lembrar o resto do sonho — algum detalhe, alguma coisa que provasse a ela que ela era, sei
lá, ela, e que eu era eu.
Mas quanto mais eu tentava, mais tudo parecia sumir, na chuva e na rua e nos muitos hectares
de campo de tabaco pelos quais passávamos, cheios de velhos equipamentos de fazenda e
celeiros que apodreciam. Chegamos aos arredores da cidade, e eu conseguia ver a bifurcação
na rua mais à frente. Se virássemos à esquerda, em direção à minha casa, chegaríamos à rua
River, onde todas as casas restauradas anteriores à guerra acompanhavam a linha do rio
Santee. Esse era também o caminho para sair da cidade. Quando chegamos à bifurcação, eu
automaticamente virei para a esquerda, por puro hábito. A única coisa à direita era a fazenda
Ravenwood, e ninguém nunca ia lá.
— Não, espere. Vire para a direita — ela disse.
— Ah, sim. Desculpe.
Eu senti um enjoo. Subimos o morro na direção da casa grande de Ravenwood. Eu tinha
estado tão envolvido com quem ela era que tinha esquecido quem ela era. A garota com quem
eu sonhava há meses, a garota em quem eu não conseguia parar de pensar, era a sobrinha de
Macon Ravenwood. E eu a estava levando para casa, para a mansão mal-assombrada
— era assim que a chamávamos. Era assim que eu a tinha chamado.
Ela olhou para as próprias mãos. Eu não era o único que sabia que ela estava morando na
mansão mal-assombrada. Fiquei imaginando o que ela lha ouvido nos corredores. Se ela sabia
o que todos estavam dizendo sobre ela. O olhar desconfortável em seu rosto dizia que sim.
Não sei por que, as eu não conseguia suportar vê-la daquele jeito. Tentei pensar em alguma
coisa para dizer para quebrar o silêncio.
— Por que veio morar com seu tio? Normalmente as pessoas querem sair de Gatlin; ninguém
se muda pra cá.
Ouvi o alívio em sua voz.
— Morei em todos os lugares. Em Nova Orleans, Savannah, Florida Keys, Virgínia por alguns
meses. Morei até em Barbados por um tempo.
Percebi que ela não respondeu à pergunta, mas não pude deixar de pensar que eu daria tudo
para morar em um desses lugares, ainda que apenas um verão.
— Aonde os seus pais estão?
— Estão mortos. Senti meu peito apertar.
— Desculpe.
— Tudo bem. Morreram quando eu tinha 2 anos. Nem me lembro deles,
'orei com muitos dos meus parentes, a maior parte do tempo com minha avó.
a teve que viajar por alguns meses. Por isso estou morando com meu tio.
— Minha mãe morreu também. Acidente de carro. — Eu não tinha ideia por que havia dito
aquilo. Eu passava a maior parte do tempo tentando não falar sobre o assunto.
— Lamento.
Eu não disse que estava tudo bem. Tinha a sensação de que ela era o tipo de garota que sabia
que não estava.
Paramos em frente a um portão de ferro forjado preto maltratado pelo tempo. Na minha frente,
na encosta íngreme, pouco visível devido à névoa estavam os dilapidados restos da casa de
fazenda mais antiga e mais famosa de Gatlin, Ravenwood. Eu nunca tinha chegado tão perto
antes. Desligue: o motor. Agora a tempestade tinha diminuído para uma chuvinha suave e
constante.
— Parece que os relâmpagos pararam.
— Tenho certeza de que tem mais de onde aqueles vieram.
— Talvez. Mas não esta noite.
Ela olhou para mim, quase curiosa.
— Não. Acho que acabou por hoje.
Os olhos dela pareciam diferentes. Tinham se esvaído de volta para um tom de verde menos
intenso, e estavam de alguma forma menores — não pequenos, mas com aparência mais
normal.
Comecei a abrir minha porta para acompanhá-la até a casa.— Não precisa. — Ela parecia envergonhada. — Meu tio é meio tímido.
— Aquele era um adjetivo um tanto suave.
Minha porta estava meio aberta. A porta dela estava meio aberta. Nós dois estávamos ficando
mais molhados, mas apenas ficamos lá sentados sem dizer nada. Eu sabia o que queria dizer,
mas também sabia que não podia dizer. Não sabia por que estava sentado ali, encharcado, em
frente a Ravenwood. Nada fazia sentido, mas eu sabia de uma coisa. Depois que eu dirigisse
morro abaixo e voltasse para a autoestrada 9, tudo voltaria a ser como antes. Tudo faria
sentido de novo. Não faria?
Ela falou primeiro.
— Acho que devo agradecer.
— Por não atropelar você?
Ela sorriu.
— É, isso. E pela carona.
Olhei para ela sorrindo para mim, quase como se fôssemos amigos, o que era impossível.
Comecei a ficar claustrofóbico, como se tivesse que sair dali.
— Não foi nada. Quero dizer, tudo bem. Não esquenta.
Coloquei o capuz do casaco de basquete, do jeito que Emory fazia quando uma das garotas
que ele tinha dispensado tentava falar com ele no corredor.
Ela olhou para mim balançando a cabeça e jogou o saco de dormir em cima de mim com um
pouco de força demais. O sorriso tinha sumido.
— Então tá. Te vejo por aí. — Virou de costas, passou pelo portão e cor-pelo caminho
íngreme e enlameado até a casa. Bati a porta.
O saco de dormir estava sobre o banco. Eu o peguei para jogar para trás.
Ainda tinha o cheiro de mofo e fogueira, mas agora também cheirava a limão e alecrim. Fechei
os olhos. Quando o abri de novo, ela já na metade do caminho.
Abri minha janela.
— Ela tem um olho de vidro.
Lena olhou para mim.
— O quê?Gritei, a chuva molhando a parte de dentro da porta do carro.
— A Sra. English. Você tem que sentar do outro lado ou ela vai fazer você falar.
Ela sorriu enquanto a chuva caía pelo seu rosto. — Talvez eu goste de falar. — Virou na
direção de Ravenwood e subiu os degraus correndo até a varanda.
Engatei a ré no carro e desci até a bifurcação, para que eu pudesse pegar que costumava pegar
e seguir pela rua que usei em toda minha Até hoje. Vi uma coisa brilhando entre o assento e o
encosto do banco, botão prateado.
Eu o enfiei no bolso e fiquei imaginando com o que sonharia esta noite.