Olhos Vermelhos

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- Hum... já é quinta-feira, Glenda?
- Bom dia dona Carla, desculpe ir entrando assim no quarto da senhora, mas o seu Henrique me obrigou a fazer isso.
- Eu já ia levantar. - Carla disse mais uma vez mentido para a empregada e para si mesma: não sentia a mínima vontade de se levantar. Passava a maior parte do tempo deitada com os olhos grudados no teto. Nos último tempos, era raro vê-la se alimentar, e quando o fazia, não comia mais que duas colheres, por insistência do marido. Tinha perdido a noção do tempo, e só sabia que era quinta por que Glenda estava ali, agora parada na porta do quarto com uma expressão preocupada.
- A senhora já tomou café?
- Não, Glenda. E já falei pra parar de me chamar de senhora, eu quem deveria chamá-la assim. Mas você odeia isso. Então não precisa me chamar de senhora.
A mais velha apenas assentiu com um sorriso em resposta.
- Você já tomou café?- Glenda reformulou a pergunta.
- Ainda não, que horas são?
- 9:30.
- Vá tomar café você Glenda, eu estou sem fome.
- Por favor, só um copo de leite. Seu estômago só deve estar vendo café e água.
- Eu não vou te fazer desistir da ideia né?
- Se não tomar café, eu volto a chamá-la de senhora.
- Você venceu.- Carla disse se levantando imediatamente da cama e indo direto ao banheiro.- me dê 5 minutos.- disse fechando a porta.
Parou de frente ao espelho e se encarou por alguns instantes.
- Você está péssima, minha amiga...- falou consigo mesma, alisando cada centímetro do rosto pálido. Ficou completamente assustada a ver o quando seu rosto havia afinado, e o quanto as olheiras estavam fundas em seus olhos. - a gente precisa reagir, mulher. - disse baixinho.
Assim que fez suas higienes, desceu as escadas já sentindo o aroma de café passado na hora. Só então se lembrou do quanto adorava esse cheiro.
- Fiz pão de queijo pra sen...pra você.- Glenda disse escorada na pia, apontando a assadeira em cima da mesa.
- O cheiro do café está maravilhoso, Glenda.- Carla disse se sentando em uma das cadeiras.
- Obrigada, dona Carla.
Poucos minutos depois, estavam as duas sentadas à mesa, e um silêncio estranho havia se instalado entre elas. Se entreolhavam algumas vezes procurando dizer algo, mas não havia nada a ser dito.
Até que por insistência, Carla quebrou o silêncio.
- Obrigada. - disse, como num sussurro.
- Você vai sair dessa minha filha.- pegou a mão da mais nova.
- Eu não consigo, Glenda.
- Consegue sim, só precisa se permitir. Eu sei que a dor que está sentindo é insuportável, ninguém espera a perda de um filho, mas o Pedrinho não ia querer isso pra você. Nunca.
- Dá pra acreditar que já fazem 5 meses? - Carla disse com a voz trêmula.- Ele era tão novo..eu não devia ter deixado ele ir naquela festa da faculdade! Nunca.
- Teimoso do jeito que era, ia desobedecer você uma hora ou outra, dona Carla. As coisas quando são pra acontecer, só acontecem. Não se culpe por isso.
- Lembra da música que ele vivia cantarolando pela casa?- disse num riso triste, secando as lágrimas quentes que desciam de seu rosto.
- Eu até decorei, a letra era bonita. Era a cara dele.
- " Eu, quero me perder.... incendiar,
Nadar além do mar...."
- " Me deixa sentir medo, tocar tudo
o que eu vejo..."
- " Não me sorri, por que eu venci,
Esses teus olhos vermelhos."
- Se ele venceu os olhos vermelhos, a senhora pode vencer também dona Carla.
- Espero Glenda. Dói muito. O Henrique está tentando parecer conformado, mas sei que também está sofrendo.
- Vocês vão passar por isso, vão ver. - Glenda disse afagando a mão da patroa.
Carla não sabia ao certo como iria fazer isso, mas precisava fazer. Pelo filho, pelo esposo, por Glenda, e por ela mesma. Iria vencer os próprios olhos vermelhos.

Pirata- O livro Onde histórias criam vida. Descubra agora