Nina

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A primeira coisa que senti quando coloquei os pés para o lado de fora do terreno, foi o vento gelado de Blumenau naquela madrugada nublada. Um vento estranho, um tanto diferente do que ele era do lado de dentro. Parecia vir com um sopro de vida. Ou de liberdade.

Talvez fosse coisa da minha cabeça, eu não saia do hospital há nove anos. Vivia confinada dentro daqueles muros como uma prisioneira. Os muros tornaram-se parte da biossistema da minha vida. Todo o meu mundo cabia no espaço entre o portão da frente e a quadra de tênis nos fundos.

Era grande, não podia mentir. Mas não do tamanho da minha vontade. Essa sempre foi maior do que os espaços comuns aos internos e meu quarto de paredes pálidas e estéreis.

Queria mais do que uma visita desconfortável por mês de um pai que não sabia o que fazer comigo, e mais do que cartões postais de camelos e pirâmides que minha mãe mandava do Egito.

A primeira vez que recebi um cartão postal de Lenora, ela estava em uma escavação na Península do Sinai. Eram poucas palavras no verso, só uma felicitação pelo meu aniversário, rabiscada naquela letra apressada dela. Como tudo o que minha mãe fazia, havia urgência em suas palavras. Sempre vendo algo a frente que ninguém era capaz de enxergar.

Os dizeres em si eu realmente nunca gravei, mas jamais vou esquecer da sensação que a foto da frente do cartão me causou.

Era uma visão panorâmica do Mosteiro de Santa Catarina, no sopé do Monte Sinai. O sol estava se pondo atrás das torres de pedras douradas e havia um camelo coberto de grossos e coloridos tecidos no portão da frente.

Lembro de sentir o calor da foto, os sons da areia do deserto e o toque do animal, embora eu nunca tenha visto um camelo de perto.

Vendo aquela imagem congelada do Sinai, tive a sensação de que morei no lugar errado minha vida toda. Era ali, naquele lugar seco de verde, que parecia residir meu lar.

Claro que nunca tive a oportunidade de conhecer, presa naquele inferno para ricos. E nem teria. Pelo menos não enquanto me julgassem louca, ou apenas bipolar, o que de fato era.

— Bri? Bri, está me ouvindo? — Morgana segurou meu braço com sua mão fria e eu estremeci. — Caramba, você está gelada, garota! — Ela retirou o casaco e jogou em cima dos meus ombros. O tecido cheirava a cigarro e lavanda. O cheiro dela. — Pronto, isso vai te manter aquecida. — Mô me olhou daquele jeito preocupado que sempre me fez pensar que ela desistiria do plano no último momento. — Deus, eu posso ser presa por isso. Você pode ser enjaulada no seu quarto por um ano inteiro à base de remédios fortes.

— Mô! — implorei unindo minhas mãos e ela suspirou, de olho nos dois lados da rua, para ver se vinha alguém.

— Certo, tudo bem. Eu prometi a você e vou cumprir, embora ache de verdade que não vai conseguir se virar aqui fora, querida.

— Por que não? Não sou mais uma criança. — O jeito como falei aquilo ficou parecendo birra infantil e ela cruzou os braços na frente dos seios fartos e sorriu.

— Bri, você viveu trancada nesse hospital desde os dez anos ao lado de pessoas malucas e outras que te davam psicotrópicos, faziam sua comida e lavavam suas roupas. Estou te jogando literalmente no mundo, menina.

— Não deve ser difícil lavar calcinhas, Mô! — revirei os olhos vendo a luz do farol vindo pela estrada de barro. Esperava que fosse o carro que ela pediu para mim. — E se não souber fazer, pago alguém. Tenho o dinheiro que Leandra deixou. Nem papai sabe que essa conta existe. Não vai haver outra oportunidade para que eu consiga sair do país, porque eu sei que uma hora ele vai descobrir esse testamento. Quero estar muito longe, quando isso acontecer.

— Vai viajar com um passaporte falso, Brigitte! — A voz forte dela aqueceu meu peito. Quase me deu saudade de minha irmã mais velha. Quase.

— Não se preocupe com isso. — Puxei mais o casaco para aquecer meu corpo. — Rogério fez um trabalho excelente, falsificando os documentos. Agradeça a seu namorado por mim.

— E sabe que ele fez um excelente trabalho baseado em que? Na sua vasta experiência em falsificação? — Mô bufou e foi minha vez de rir.

Peguei a mão dela e apertei firme.

— Vai dar certo. — falei aquilo pela vigésima vez só nos últimos dois dias.

— E se não der?

Eu sabia que estava arriscando muito com aquele plano. Se eu fosse pega, a única coisa que fariam seria me prender de volta no hospital e me dopar pelo resto da vida. Se Morgana fosse pega, ela seria demitida e provavelmente presa, por ter tirado uma interna sem autorização do responsável.

Mas eu precisava arriscar. Minha vida valia aquilo.

— Se não der certo eu digo que fiz tudo sozinha. Não vou te entregar, nem Rogério. Prometo! — Fiz um sinal de gancho com o dedo indicador e coloquei na frente do peito esquerdo, como Leandra me ensinou a fazer quando eu era criança e ela prometia chegar em casa antes das dez.

Bom, ela sempre cumpriu isso. Menos quando se matou.

— Ah, garota... vou ficar tão aflita sem notícias suas. — Ela me abraçou com força e eu voltei a sentir o cheiro bom e familiar dela. — Quando puder, manda um email para mim, certo? Não, manda para Rogério, ele é menos suspeito.

— Tudo bem. — Soltei-a quando o carro parou ao nosso lado e perguntou quem era Morgana. Eu ergui minha mão, pedindo para ele esperar.

— O que você vai precisar está na mala que te dei. — Ela comentou baixinho só para mim. — Quando chegar até a rodoviária troque essa roupa por uma das minhas. Lembre-se de não conversar com ninguém e jamais diga seu nome verdadeiro. Mesmo a pessoa mais confiável não vai ser quando descobrir que vai valer uma fortuna, informações sobre você em alguns dias. E muito cuidado com homens, todos eles. Lembra tudo o que te falei, não é?

— Sim. — Acenei sentindo meu peito acelerar de entusiasmo. — Tecnologia é perigosa e homens só querem entrar dentro da minha calcinha.

Ela riu e beliscou minha bochecha.

— Isso, garota! — Piscou para mim. — E em caso de emergência...

— As luzes se acenderão automaticamente. — brinquei com uma das piadas internas do hospital, o que fez Morgana gargalhar daquele jeito que eu adorava. — Não se preocupe, Mô. Ficarei bem.

Ela parou de rir, suspirou e abriu a porta do carro para mim. Eu entrei tão empolgada que me sentei em cima do casaco, fazendo com que um riso nervoso surgisse dos meus lábios. Estava tremendo.

— Ah, já ia esquecendo. — Morgana tirou um caderno verde do bolso, meu passaporte, e passou para mim pela janela. Eu segurei de um lado e ela do outro. — Ande de camelo, coma comida cheia de areia do deserto e ame o mundo a sua volta. Seja feliz, Nina!

Ela voltou a piscar um olho para mim, e eu ri antes de piscar de volta.

— Pode deixar! — falei baixinho e mesmo na semiescuridão eu vi os olhos dela marejarem.

Mô se afastou do carro, deu duas batidas no capô, liberando o motorista, e ele partiu sem muita cerimônia.

Fiquei o tempo todo olhando pelo vidro dos fundos do carro enquanto Morgana sumia no horizonte. Uma enfermeira de branco em pé no meio da rua de terra, sendo meu ponto de luz agora como foi desde a primeira vez que me acolheu em suas asas, quando eu era só uma garotinha assustada e em luto.

Quando não dava mais para ver minha amiga, virei para frente e sorri quando o motorista ligou o som do carro em uma música divertida.

Eu estava deixando toda a minha história no passado para assumir outra. Encontrando outro ponto de luz.

A garotinha assustada, irmã de uma jovem morta, filha de uma arqueóloga esquiva e de um senador ausente, tinha ficado no passado.

Brigitte morreria naquele dia, como toda a sua família fez questão de matá-la por tantos anos presa ali.

Era a vez de Nina assumir as rédeas. E essas rédeas a levavam até um deserto distante. Muito, muito longe dali. 

Desertos Distantes (Degustacao)Onde histórias criam vida. Descubra agora