A PROTEGIDA

51 16 7
                                    

A PROTEGIDA

Rosário arrastava as sandálias, levantando poeira avermelhada atrás do criado da família Águila, cujo andar era um tanto difícil de alcançar. Ofegante, a mulher se perguntou quanto mais ela deveria andar. "Falta pouco já", murmurou o criado, como se lesse sua mente e repetisse o perverso engano que dissera cerca de um quilômetro atrás. Rosário ficou perplexa ao ver que as ruas da cidade estavam praticamente vazias de homens e com poucas mulheres que perambulavam com pressa, talvez procurando cumprir os afazeres que suas patroas lhes haviam encomendado. Pareceu-lhe que havia uma expressão de urgência incomum em seus rostos. "Será que é feriado católico?", questionou-se a mulher. Quando estavam a atravessar a encruzilhada, o homem ergueu o braço e apontou o dedo para uma grande casa a cem metros de distância. "Aí está a casa", disse o criado. A última rua a atravessar era mais movimentada do que as outras, principalmente por três enormes vagões cuja carga não se distinguia, um par de cabriolés e uma única carruagem. Com extremo cuidado, a mulher procurou não pisar no esterco fedorento misturado com lama, pois não causaria uma boa primeira impressão à sua futura empregadora se chegasse em casa com suas sandálias sujas e malcheirosas.

Na varanda da mansão, Dona Elisa estava parada com um lindo vestido de verão, observando-os chegar, acompanhando-os com o olhar. Seu rosto pálido e severo impressionou a pobre futura criada, que não ficou muito satisfeita com a maneira como a mulher franziu a testa ao encará-la. Mas Rosário não deixou transparecer, porque seu rosto estava acostumado à inexpressividade. "Aqui está, senhora", disse o criado. Dona Elisa olhou para ela com desdém e perguntou ao criado: "Uma índia?". "Mestiça, dona Elisa", retrucou, rimando, com um certo aborrecimento levemente disfarçado, não por sua total falta de consideração por Rosário, mas pela forma petulante de se dirigir a ele, porque a seus ouvidos parecia que ela havia dito: 'não pudestes trazer-me algo melhor?'. "Qual é o seu nome?", perguntou a senhora. "Meu nome é Rosário", respondeu a mulher timidamente, omitindo deliberadamente o sobrenome, o que poderia denunciar o fato de sua miscigenação não ter sido por causa do pai, cujo sobrenome era Mamani. Ela não tinha vergonha de seu sobrenome, que significa falcão, cuja história remonta aos antigos imperadores e guerreiros incas, mas tinha medo de uma reação escandalosa da senhora branca. Dona Elisa olhou para ela da cabeça aos pés e após um breve momento pediu-lhe que a acompanhasse para mostrar a casa e explicar as tarefas que ela deveria realizar.

Quando Rosário entrou em casa teve uma sensação estranha, como se aquele ambiente a repelisse. Ainda assim, maravilhada com o brilho da mobília de madeira, as paredes claras, o piso de cor ocre brilhante a atraíram. Ela sentiu que era seu dever sacudir bem as sandálias antes de entrar. Ela teve a impressão de estar fora do lugar e fora do tempo, como se desentoasse ela mesma e suas roupas. Porém em pouco tempo a sensação se esvaiu e ela começou a seguir a dona da casa ouvindo atentamente suas instruções. Na sala de jantar havia uma mesa retangular bastante comprida com seis cadeiras escuras com encostos finamente esculpidos nas laterais. À direita havia uma grande janela que dava para um pátio interno, mais precisamente uma fonte. Do lado esquerdo da mesa havia um aparador, sobre o qual um vaso com flores, um candelabro de bronze com três velas e alguns porta-retratos ocupavam o espaço central. Entre os porta-retratos, havia um em particular que chamou sua atenção: um general de barba espessa e semblante solene. "Tem que limpar a mobília todos os dias", disse dona Elisa, passando o dedo pela superfície do aparador e erguendo-o até a altura dos olhos de Rosário. "Mas hoje não temos tempo para isso. Você vai para a cozinha ajudar a nossa cozinheira", disse a senhora e então se perdeu em um dos muitos cantos da casa que eram mistérios que esperavam ser desvendados no dia seguinte.

Na cozinha conheceu Carmen, a cozinheira, uma mulher negra que já devia ser avó. A cozinha era uma grande sala retangular com três armários e uma prateleira alta. Ao lado de uma estante havia uma porta pintada de verde que pertencia à despensa. A bancada ficava logo abaixo de uma pequena janela, que era a única fonte de luz natural. A cozinha ficava no último canto da casa, pelo que a janela dava para o rio, que refletia a luz do entardecer e, nessas ocasiões, encandeava um pouco ao tempo que causava o suor de quem ficasse de pé em frente à mesada. Carmen não reclamava, pois valia a pena contemplar aquele espetáculo. Rosário ficou calada enquanto cortava verduras ao lado da cozinheira que não parava de falar. "Hoje é feriado?", ela perguntou só por perguntar, para ter o que conversar. A cozinheira olhou para ela perplexa. "Garota, onde você esteve esse tempo todo?", Carmen perguntou. Antes que Rosário pudesse articular palavras, enquanto gaguejava e tentava responder literalmente a uma pergunta retórica, Carmen continuou: "Estamos em guerra, minha filha. A guerra da independência, dizem eles. Talvez você tenha pensado que era feriado porque as pessoas estão correndo de um lado para o outro. Mas você deve ter notado que não há muitos homens por aí. Pois é, eles foram à guerra, para defender esta região dos independentistas". Percebendo o horror que transfigurava o rosto de Rosário, a mulher acrescentou: "Mas não se preocupe, querida. Estamos a salvo". O rosto de Carmen iluminado pela luz ténue do entardecer dava a Rosário a sensação de uma sabedoria milenar ante a qual ela não podia deixar de se sentir consolada, apesar das palavras simples que lhe havia pronunciado. "Em uma guerra você deve escolher um lado", disse Rosário, como um pensamento repentino falado em voz alta. "Talvez devêssemos, mas não é nossa guerra, minha querida", Carmen respondeu enquanto cortava as cebolas e as colocava em uma panela. Então ela se aproximou dela, quase sussurrando: "As outras criadas desapareceram. Acho que elas já escolheram seu lado. Eu não as culpo. Eu teria feito o mesmo, mas não é seguro ... E se os independentistas perderem? O que vai acontecer com elas? A família Águila defende a Coroa. Talvez você deva saber disso. " Elas voltaram ao trabalho sem dizer mais nada. Rosário olhava fixamente para algum lugar entre o rio, o bote atracado atrás da árvore e as montanhas. Foi então que o provérbio que dizia "Embora a águia voe muito alto, o falcão a mata" de repente veio à sua cabeça, como se um espírito tivesse soprado em seu ouvido. Ela pensava que a altivez da mulher branca e de toda a sua espécie era como a da águia. Era como se o destino tivesse pregado uma peça nelas: Águia e Falcão.

LabyrinthosOnde histórias criam vida. Descubra agora