Prólogo - Nascimento

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E das cinzas da guerra,
A madeira cinzenta se ergue,
A espada dourada se racha,
A lança prateada se parte,
O cálice simples se entorna,
E a última trompa da fartura é tocada,
É chegado o retorno do Grande Corvo.

Caía a noite sobre a cidade de Lentor. Uma cidade pacífica, que no momento estava coberta de alegria. Era uma noite quente, o ar fresco carregado das flores desabrochando da primavera soprava com gosto pelo campo, até o alto e imponente castelo. O Forte do Titã, quase prateado à luz da lua cheia, era a fonte da maior das felicidades naquele dia.

De sua janela, Titânia podia ver seu marido, valsando e bebendo com os nobres das senhores e senhoras das cortes. Seus cascos saltavam e voavam pelo piso preto e marfim do palácio, tão rápido como se atravessassem outra vez aquele campo sangrento em que se conheceram. Parecia improvável, uma princesa e um senhor de guerra se encontrando em pleno combate... Mas foi assim, tão improvável quanto a pequena criatura que agora repousava no berço ao lado de sua cama.

- Ele deve estar muito orgulhoso. - A ruiva falava a si mesma, querendo estar lá com ele, enquanto remexia de leve no cabelo vermelho como sangue, ondulado, e no momento grudento de suor. Uma pena que não tinha forças nem para andar direito, quem dirá dançar. Mas, se pudesse, tocaria seu violino e deixaria seus pés irem aonde quisessem a noite toda, junto aos dele.

Diversão era algo pouco mais que impossível de se ter a alguns anos. Por séculos, a rivalidade e a guerra entre os exilados - as cortes dos Unseelie - e os habitantes de Pandora - as cortes dos Seelie - vinha se arrastando. Desde que, a milhares de anos, seus vizinhos foram expulsos das Terras da Luz, forçados a morar em Urghol por seus hábitos repulsivos e natureza selvagem, estes tentavam sucessivamente invadir Pandora. O império da Corte do Sol era amplo, se estendia desde as montanhas do norte até às planícies do sul, dos rios do oeste as colinas do leste, e por todo o território que tinham seus inimigos tinham muitas regiões para invadir. Espalhados pelas ilhas e arquipélagos ao redor, atacavam por todas as brechas possíveis, mas sua última invasão foi uma das piores - e das mais demoradas.

O pai de Titânia a deixou responsável pelo reino, como era a tradição das faerie, assim que ela atingiu a maturidade. Ela elegeu dentro todos o candidato mais capaz, um jovem de cabelos negros que dançava pelo campo com sua espada com a mesma habilidade que um dançarino em uma pista de dança. O rapaz ocidental era charmoso, livre, e logo conquistou seu coração. Ambos lutaram, derramaram seu sangue e de suas tropas naqueles campos do Oeste, mas no fim seu sacrifício valeu a pena. Os Unseelie recuaram para lamber as feridas, e Pandora ganhou alguns anos de paz.

Talvez pela guerra, ou alguma força ainda maior, mas em todas as suas dezenas de anos ela nunca pensou que se tornaria mãe. Os faerie dificilmente engravidam, e seus bebês costumam morrer no ventre em poucas semanas. A rainha nunca imaginou que seria ela uma das fadas sortudas... Agora, depois de horas de dor e agonia, um sofrimento enorme e uma boa gritaria, seu bebê tinha enfim vindo ao mundo. Ao desviar os olhos azuis, quase verdes, da janela aberta, ela via aquele pequeno pedaço de esperança e de alegria se remexendo no berço. Tão delicado, parecia tão em paz...

Seus nervos de batalha tinham se acalmado a essa altura. Depois de anos trabalhando com o marido para deter a invasão dos Unseelie em seu reino, tinha se acostumado demais a ficar sempre atenta, dormir quase com um dos olhos aberto, mas agora... Estava tudo tranquilo. Fresco, com cheiro de fumaça e flores no ar. Uma bela noite de primavera e lua cheia, quando a primeira criança da luz nascia em décadas. Não podia dar nada de errado.

Era isso que seu cérebro cansado pensava. Isso que a fez fechar os olhos, pesados, sonolentos, embalados e exaustos do trabalho de parto. Sua mente divagou, e quando os abriu novamente podia ver a janela aberta... Mas, a janela que dava para fora. Não a tinha trancado? Bastou essa confusão, e seu corpo dolorido tentou se erguer, que veio uma piscada. Quando piscou, viu: uma figura enorme, escura, com um várias faixas envolvendo o corpo e uma capa de penas de pássaro. Penas grossas, disformes, rasgadas, sangrentas. Sobre o rosto, uma máscara de osso, um gigantesco crânio bicudo com duas órbitas vazias. A figura magra e disforme carregava um bebê... Seu bebê.

- O que... Tire... Tire as mãos dele! - A voz ainda embotada de sono e cansada da rainha soava, poderosa, mas sua magia não alcançava o estranho, nem suas palavras. Ela levantava, dolorida, se esforçando e com as mãos para frente tentando o puxar de volta - Largue o meu bebê!

- Tânia? - A voz grossa, raspada de Oberon soava da porta. O marido veio rápido, andando pra dentro do cômodo. A ruiva estava gritando para a janela.

- Obe, me ajuda! Ele levou... - Os olhos cinzentos da fada iam até a janela, mas não via mais nada. Piscava ainda, mas nada havia ali. - ...mas, como... - Ainda atônita, ela olhava para o quarto. Tudo parecia no mesmo lugar.

- Quem? O vento? - O rei brincava, entrando no quarto e indo até sua esposa. Ele a pegava pela cintura, segurando seu rosto. Ela se sentia bem mais segura assim, mas ainda havia algo errado. Ela sabia que tinha algo errado.

- Eu vi, ele levou nosso bebê. Ele levou! - A rainha insistia, mas logo olhava para o lado. No berço de madeira esbranquiçada, estava seu filho. Bem, parecia seu filho. Mas algo parecia... Diferente.

- Tânia, você está vendo coisas. Foi só um pesadelo. - Ele a acariciava, beijando sua testa. A barba rala raspava em seu nariz. - Está tudo bem, nada vai machucar vocês. Quer companhia? - Ele perguntava, gentil, e a fêmea se deixava abaixar a guarda outra vez. Despencava em seus braços, se deixando ser levada.

Ela sabia, tinha certeza de que viu o que viu. Aquela coisa tinha levado seu filho... Mas ele estava ali. Repetia pra si mesma, ele estava ali. Seu bebê estava ali.

Tudo ia ficar bem.

As Crônicas de Aetheria - A Espada das ChamasOnde histórias criam vida. Descubra agora