O Inexorável

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O mundo não é justo, mas o prefiro assim. Daqui, da minha cadeira, escritório, mesa, imagino como e como... Pensa, pensa, como seria o mundo se todos os sem-teto possuíssem casa? Não me entenda mal, não tenho nada de vilania, não tente me desmoralizar. Agora que conheci meu amigo juiz, não tenho mais medo de rechaçar ofensas. Fui tão bem educado pelo dinheiro dos meus pais, frequentei as melhores das escolas de nosso país, conheci intelectuais banqueiros e magnatas amigos e colegas de meu pai, apenas não há forma, não há possibilidade de você me convencer disso. Vamos discutir as ideias, pois minha pessoa é íntegra e versada em muitas facetas.

Por exemplo, afastando as cortinas amareladas de tabaco, vejo da janela a essência da cidade. Uma cidade cinza, prova do avanço e da civilização. Tudo é sombra, tudo é aconchegado pelas outras cortinas: as de fumaça. E raios da fúnebre criação divina que é o Sol, feitos para queimar as retinas humanas, não existem. Não existem! E antes que venham me ignobilizar, que venham os idiotas chamar-me de ignorante, esclareço: claro que os raios ainda existem. Por cima das cinzas do progresso fabril, carruagem extravagante cujo fardo é o sustento de toda a civilização, ainda existe o Sol que circunda a Terra e sua luz predatória; em nossa era, os homens mostram-se obstinados. Não sou estúpido, imbecis! E a luz do Sol, há de se concordar, nada se compara com a pureza das lâmpadas à gás. Só de pensar, ai que prazer...

Entendem agora o que quero dizer? Simplesmente do progresso vem a destruição, que vem a reconstrução que vem mais progresso e mais e mais e mais! Choro até de pensar. Imagina só um prédio, um prédio tão alto, com espelhos tão negros e colunas tão robustas! Tuas vigas furam os céus, atingem o limite do conhecido, oh, Torre Magna! E lá, bem do topo, tuas chaminés projetam fumaça! Queimar-se-ão os pulmões de Deus! É uma cena de afronto poder amor. Guerra justiça e, e... e Sucesso! O dono ri e bate palmas. Merece e merece muito. Olhai o que ele fez por todos vós, humanos! E os operários trabalham, choram pela comida que não conseguirão. Mas é a vida. É a condição de nossa existência, nesse paraíso que nos foi dado pra ser explorado, esmigalhado, transformado à pura vontade e emoções dos triunfantes poderosos. E é isso que entendo por desigualdade. Progresso. Progresso na sua mais pura forma.

Quando um perde a casa, outro a toma. Quando uma família passa fome, outras aproveitam esse extra, e sim, fazem melhor uso. Não me venha dizer besteiras. Ninguém gosta de ver isso, o sofrimento dos outros. Quem acha bom assistir aquele bêbado repugnante que mora nas ruas chorar e balbuciar clemências sem sentido pela perda da esposa a outro alguém e da filha para a poliomielite? Temos uma obrigação divina, interlaçada com uma demanda soberana: retirar essas pessoas de vista, remover a tristeza e dor que povoam nosso mundo apagado. Este é o interruptor que acenderá a lâmpada à gás que é o avanço civilizacional. Essas pobres almas, burras e debilitadas, não poderão fazer nada pelo progresso mesmo. De início, sinto pena delas. Todavia, depois penso:

- Que que há?

Foi por isso que tomei a faca pela mão e o degolei, amigo juiz, e não aparecerei no tribunal.

Crônicas e outros textos avulsosOnde histórias criam vida. Descubra agora