Carta ao Médico

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Olá, doutor Natsume. Quanto tempo...

Realmente, passou-se tempo desde nosso último exame, desde nossa última consulta. Eu me pergunto... Como foi esse tempo pra você? Breve ou longo? Aprazível ou insuportável? Foi de trabalho, foi de descanso, foi de estresse, companhia ou solidão? Essas perguntas são vagas, eu sei, faço elas mais por decoro mesmo. Mas de certa forma voltam-se contra mim e me atacam.

O tempo... É estranho. Ele nos atravessa com uma neutralidade tenebrosa. Ele mata e está matando tudo sem pena a cada segundo. E tudo renasce em seguida, lutando pra viver, mas sempre morrendo no mesmo instante. Eu quero que o tempo pare para eu poder pensar. Como raciocinar, perceber o ambiente de fora, fora do interior, se eu não sou mais eu? Fico inquieto, e essa inquietação surge desse rondante quebra e junta que não aguento mais ter descoberto. Tudo é novo, tudo muda e é hostil, até meu corpo, mimha consciência e eu, eu, eu... As minhas memórias são intrusas de um universo passado, quebrado, parasitas defeituosos que me segurm e me invadem pra trazer a consciência da dor.

Eu havia melhorado com o senhor, sabe? Como eu valorizo seu trabalho, doutor. Você me trouxe o que parecia ser a cura, mas não era. E eu não te culpo por isso, não tinha como você saber. Você me ajudou, de verdade. Pena que não existe eternidade, tudo tem que ser caótico, quebradiço e findo. Foram dias, meses ou anos, já não consigo recordar, que estive livre dela. Mas ela voltou, doutor. De início quis vê-la de perto novamente, mas já me arrependo. A corrente voltou, só que pior.

Agora é mais longa que uma montanha e seus elos queimam, possuem espinhos. Não posso escapar dela, nem por um segundo, pois enganchou-se em minhas pernas bambas. Eu pareço um sapo. E se a corrente descobrir isso, vai se desmanchar de sal para ne ver sofrer. Ela se enrosca em meu pescoço, me sufoca e causa tosses. Ela se enrosca na minha cabeça e me dá as piores dores, os piores pensamentos, os piores instintos. Se enrosca na minha boca e tranca-a para eu não comer. Se enrosca nos meus braços e me usa de ferramenta. No meu peito, e me transforma num animal, num monstro que se odeia e odeia o mundo. Ela quer sangue. Ela vê prazer na chacina. E ela me amarra, me arrasta até os frutos de sua satisfação. Eu não tenho como evitar. Mesmo quando acho que estou no controle, descuido leviano me banha de sangue, de tripas. Eu já tentei fugir, já tentei, tentei e rodeei-me de corpos. A corrente não quer que eu morra. Me protege e me tortura, cínica. Ela não me quer vítima, pois não a mereço. Sou um fantoche de meia a brandir um canivete enquanto é controlado por um dragão.

Doutor Natsume, eu não tenho o que pedir a você, já sei que não tenho mais saída. A corrente voltou, entretanto. A corrente voltou e me ligou ao senhor.

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