Não sei dizer exatamente quando o sonho começou a vir.
Eu me deitava para dormir esperando que tivesse um sonho, que não sonhasse, ou pelo menos tivesse um pesadelo diferente. Mas não cessava.
Tentei chás, remédios, até mesmo drogas.
O sonho era claro e objetivo: uma mulher no topo de uma escadaria, completamente parada. Seus braços emolduravam sua cintura e quadris com firmeza, e seu cabelo era imóvel.
Não sabia se usava roupas, nem mesmo sabia como era seu rosto; o cômodo, mais parecido com um corredor, era curto e escuro. Não havia portas, apenas a escadaria... e ela.
Ela não dizia nada. Não se mexia. Cheguei a pensar que deveria ser um manequim. E eu não conseguia me mover. Entretanto, sua figura era tão enigmática e imponente que eu nem tentava. Ficava encarando sua silhueta perfeitamente simétrica, enquanto conseguia escutar apenas os sons de meus próprios batimentos cardíacos.
Então, depois de meses, ela desceu um degrau.
Eu não a vi descer, e não aconteceu durante o sonho. Ela estava no topo da escada em um dia, e na noite seguinte, apareceu um degrau abaixo.Não pensei que fosse nada demais. A escada tinha doze degraus, afinal de contas, então, ela ainda estava longe.
Não muito tempo depois, ela havia descido mais um degrau.
Comentei com meu terapeuta, que me disse que era normal, e que provavelmente estava ligado ao meu trauma.
O sonho era gélido, estático como uma fotografia perturbadora, mas durava pouco. Eu a via, na escadaria, e então meu cérebro sonhava com outras coisas, o que era bom. Havia uma mudança, e dormir havia se tornado um fardo menor.
Só que aí, de repente, ela havia descido todos os degraus restantes de uma vez só, e apareceu na minha frente, mas ainda não havia rosto. Não havia olhos marcantes nem qualquer estrutura facial. O sonho durou a noite toda.
Longas horas encarando seu vazio.
Tive uma crise de pânico ao acordar, e tentei não dormir mais. O medo tinha consumido boa parte de mim, e estava me convencendo de que aquilo só poderia ser algum aviso, alguma premonição, e que eu iria morrer.
É claro, não passei das setenta e duas horas de insônia.
Desmaiei no sofá com a televisão ligada, ao lado do meu gato, e veio o sonho mais uma vez. A escadaria, as paredes de concreto, a luminária inútil no topo dos degraus e... nenhum sinal dela. Não estava mais lá.
Foi o que eu pensei a princípio, antes de olhar para o lado.
Estávamos de mãos dadas, subindo as escadas juntos. E jurei ter visto a ponta de seu nariz ser iluminada pela lâmpada.
Subimos um degrau, e então eu acordei, suando, mas com frio, e sem meu gato para me confortar. Ele havia ido dormir em sua cama.
Comentei com meu terapeuta que agora estávamos subindo as escadas juntos, mas não prestei muita atenção e só reparei que ele anotou algumas coisas em seu computador e parecia um pouco preocupado.
Os dias se passaram dessa forma: a cada noite, subíamos um degrau juntos. O sonho começou a se tornar reconfortante. Comecei a dormir melhor. Minhas olheiras sumiram e eu estava rendendo mais no trabalho.
Ao chegarmos no topo da escada, ela falou pela primeira vez. Era a voz da minha mãe.
Ela disse:
"Olhe para baixo".
Quando olhei, vi a mim, de estatura pequena e olhar indefeso, tremendo. E me lembrei de quando minha mãe me trancava no porão escuro cheio de ratos por horas, até que eu aprendesse a me comportar.
"Não precisa mais disso", ela me assegurou.Uma porta se abriu, ali, bem na nossa frente, no topo da escadaria, e caminhamos de mãos dadas para fora dela.
"Sinta a brisa", pediu a figura, e então, senti-me tão leve que parecia flutuar.
Era uma sensação boa, de liberdade. Finalmente, aquele inferno havia acabado.
Enfim, me encontraram sem vida na calçada em frente ao prédio onde ficava meu apartamento. Até mesmo meu terapeuta foi me ver.
Eu havia subido as escadas para o telhado e me atirado de um edifício de dez andares, vítima de sonambulismo agudo.
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CACOS
Short StoryMilhares de cacos de vidro não funcionam como peças em um quebra-cabeça. São quebrados, lascados e permanentemente danificados. Por isso, mentes fraturadas e corações partidos são irreparáveis. Cacos são apenas pequenos fragmentos de histórias inco...