Pedaços ao chão

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Pódios são temporários, sempre haverá outro e depois outro, eles não foram feitos pra durar! Quem vive de novidades nunca estará satisfeito, o mundo atualiza-se rápido demais, quem escolhe correr a corrida do "primeiro lugar" só prioriza a si, e corre incansavelmente buscando o conseguir. Não há espaço para o outro e nem para coisas antigas, porque legal é quem se atualiza!
Pessoas vivendo sem propósitos, vasos bonitos mas vazios! Um vaso adornado de beleza mas vazio, é inútil!
Assim era aquele momento presente, por fora muita beleza mas por dentro um vazio quase inexplicável, uma dor que parecia incurável, tudo, tudo aquilo era como correr atrás do vento!

Anna observava a plateia da Coxia, antes de iniciar mais um de seus solos perfeitos, já fazia mais de três meses desde que sua professora a humilhara durante o ensaio e agora era finalmente o momento de apresentar ao mundo aquela perfeição que exigira tanto esforço, respirou fundo tentando ignorar todas as vozes externas e de certa forma também a interna, aquela pressão toda deixava seus músculos rígidos, estava acostumada com a pressão, mas naquele momento tudo aquilo a sua volta a estava fazendo muito mal, sua cabeça girava e seu estômago embrulhava pela falta de refeição, durante todo o dia havia comido apenas um prato de salada e água, buscando o visual "perfeito".

Por fim ouvira a deixa para voltar ao palco, agora sem seus companheiros de dança, dirigiu-se até o centro do enorme tablado e iniciou sua sequência de passos tantas vezes ensaiados, enquanto o som do piano ressoava suas sapatilhas batiam no chão com leveza no mesmo compasso de tempo das teclas do instrumento.
Quase ao final de sua coreografia, quando tudo parecia estar finalmente dando certo, em um salto que era o "gran finale" de sua apresentação, Anna sentiu uma grande tontura que a fez perder o equilibrio e cair, aquele passo ensaiado tantas vezes por seu alto nível de complexidade, agora apagara todo o brilho de seu espetáculo, Kim Na-ri estaria conformada se fosse apenas isso, mas a maneira como caiu machucou gravemente seu tornozelo, não seria tão fácil continuar com sua carreira com um tornozelo quebrado, grandes companhias não costumam aceitar bailarinas que já passaram por uma cirurgia, reabilitação e fisioterapia, além da dor aguda que sentira o que mais doía eram todas as possibilidades que passaram em sua mente naquele momento, com certeza a companhia não a esperaria e a cancelaria sua bolsa, também não conseguiria cuidar da criança russa, por tanto não receberia seu salário por aqueles meses, antes de desmaiar pela dor no meio do palco Anna teve certeza que sua vida havia acabado.
***

Tentava abrir os olhos com certa dificuldade e quando por fim conseguiu, ao olhar em volta, se deu conta que estava em um hospital, os analgésicos estavam cumprindo bem sua função, não sentia mais aquela dor agonizante, mas seu desespero continuava ali. Forçou sua mente a formular as frases que gostaria de dizer ao doutor ao seu lado dosando medicamentos, precisou lembrar algumas palavras russas naquele momento.

— Licença, por favor, poderia me dizer o que vai acontecer com meu pé?

— O processo cirúrgico já está preparado, como a senhorita é estrangeira precisávamos de sua autorização para dar inicio, está ciente da necessidade desse processo? Você teve uma lesão grave no tornozelo, precisamos entrar no centro cirúrgico agora!

— Eu vou conseguir voltar a dançar? Quanto tempo vai levar até que eu consiga voltar a competir?

— Competir? Desculpa senhorita, mas acredito que não seja mais possível pra você! A estabilidade e o equilibrio não permanecem os mesmos após um processo cirúrgico! Mas não temos outra opção!

Todas as palavras sumiram, evaporaram como fumaça de sua cabeça, naquele momento nada mais fazia sentido, olhou ao lado sua sapatilha rasgada, e se sentia exatamente como aquele instrumento de dança que tanto usara na vida, rasgada e sem propósito! Um vaso adornado que acabara de ser estilhaçado, em milhares de pedaços!

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Após a cirurgia seus sentidos ainda estavam confusos, em seu coração não queria aceitar que estava de fato passando por tudo aquilo. Naquele momentos acabara o brilho, as luzes, a beleza e tudo que restara era dor e os barulhos dentro daquela sala de hospital nem um pouco armoniosos, queria ao menos ter o luxo de ficar em silêncio mas até isso lhe fora furtado! Na-ri não pôde evitar deixar as lágrimas caírem, ao lembrar de toda sua dura trajetória, abandonada naquela sala fria encontrou algum conforto na paisagem ao lado de fora da janela ao lado de sua cama, as árvores cobertas pela neve, que acentuava o frio do primeiro dia de dezembro, deixavam a paisagem bonita mas sem vida, e esse era exatamente o sentimento dentro dela! O mundo estava fora do lugar e ela do lado de dentro da janela sentia-se uma prisioneira desejando voltar ao seu ninho.
Enquanto observava a paisagem, seus pensamentos a dilaceravam. Assustou-se com um passarinho que acabara de pousar na árvore onde repousava sua visão. Por alguns segundos invejou a liberdade daquele ser pequeno cantando mesmo sem um lugar seguro pra repousar. Como ele conseguia continuar a cantar em meio as tempestades? Quando ele caí quem o devolve a fé para voltar a voar? Queria aquelas respostas para sua própria vida.

Depois de uma semana deitada naquela cama dura de hospital Anna pôde enfim voltar à sua "casa". Gastou toda sua economia pagando a conta do hospital e remédios. Estava melhor mas ainda em recuperação e só andava com ajuda de muletas.

Ao chegar no lugar onde vivia naquele país tão distante permitiu-se dormir no silêncio daquele quarto escuro e por algumas horas descansar sua mente. Despertou com uma ligação em seu celular, atendeu ainda sonolenta pelo efeito dos remédios, e ouvira um inglês bem falado por um sotaque russo da voz rouca de seu namorado.

— Anna, está melhor? — Nickolai perguntou o tanto quanto se permitira preocupar.

— Mais ou menos Nick! Estou preocupada não sei o que vai ser agora!

— Não queria ter que te dar essa notícia, mas escutei que você perdeu sua bolsa! Deve ter chegado alguma notificação em seu celular. As notícias no nosso meio correm muito rápido. — suspirou — Não sei o que vai fazer Anna, e sei que não é o melhor momento pra isso mas não acho que seja prudente continuarmos com o relacionamento.

— Do que você está falando? Como assim? O meu acidente tem alguma coisa a ver com isso? — não podia acreditar que aquilo estava de fato acontecendo.

— Olha só acho que não faz mais sentido, desculpe Anna, te desejo uma boa recuperação! — desligou.

Nickolai tinha um típico comportamento frio. Mas não esperava tamanho descaso daquele que dizia estar ao seu lado, ainda mais naquele momento tão delicado. Notou que de fato tinha recebido uma notificação em seu email notificando seu desligamento da companhia de balé!

Chorou amargamente, estava sozinha, machucada e quebrada! Não sabia se algum dia seria possível qualquer tipo de restauração, tudo tinha acabado, tudo...
A única coisa que conseguia pensar era em sair daquele país o mais rápido possível! Colocou em sua mala as poucas coisas que tinha, e não conseguiu deixar pra trás sua sapatilha rasgada, fechou a mala e partiu de volta pra casa no primeiro vôo que encontrou em direção a Coréia!

O avião decorado com alguns enfeites de natal a fizeram recordar seu lar, a doce presença e harmonia de natais passados! Lembrou- se o motivo do porque seus pais comemoravam o Natal, a esperança que o menino Jesus trouxe ao mundo quebrado quando nasceu! "Aquele que restaura" era assim que ela o identificava; quando criança o enfeite preferido dela era o menino Jesus em uma manjedoura desenhado em um círculo de madeira com essa frase escrita. Quando lhe perguntavam quem era Jesus ela alegremente respondia "Aquele que restaura".

Orou naquele momento como há anos não fazia, pediu a esse Jesus a oportunidade de viver o que aquele enfeite de natal anunciava, a restauração!

Esta noite, quando a neve cair.Onde histórias criam vida. Descubra agora