A manhã amanheceu cinzenta e fria naquela quarta-feira, e da janela do seu apartamento no Catete, Gaspar observa as nuvens carregadas no céu com os lábios em uma linha reta, tomando uma expressão de preocupado. Ele sabe que a cidade, quando chove muito, tem alagações por toda a parte, mas fica muito preocupado com o seu marido.
Na noite anterior, Gaspar passou a noite quase em claro pensando em como eles poderiam ser felizes se uma criança fosse adotada, revirando todos os lados da cama, de um lado para o outro para ver se conseguia dormir. Mas não conseguia com esse assunto martelando a sua mente. Ter um filho sempre foi uma missão para ele, mas ele não sabe se Diogo está disposto agora a tal proeza.
Saiu de perto da janela da área de serviço e foi para a cozinha onde lavou algumas panelas que estavam sem lavar na pia, que tinha esquecido na noite anterior depois do jantar. Ele ama preparar qualquer coisa para o seu marido que chega cansado do trabalho, mas quando ele chega do plantão no fim da tarde é a vez de Gaspar ir trabalhar no bar — a única coisa que ele arrumou depois de tudo — e está satisfeito mesmo assim.
Ele não costuma pensar muito na morte do seu pai, para que a tristeza não venha junto. Parece meio injusto mesmo depois de tudo o que ocorrera em sua vida no morro, mas ele ainda era seu pai. E saber que ele morreu de forma tão grave, achando que a pessoa que ele mais amava era tão inocente, despedaça Gaspar em mil pedaços.
E tudo o que Gaspar mais quer no momento é que Camilo pague por tudo o que fez. Eu não desencaso enquanto aquele monstro viver, pensou Gaspar jogando o pano de prato em cima da pequena mesa de vidro e ferro que tem na cozinha.
Seu celular começou a vibrar dentro do bolso do avental, sua mão deslizou sobre o tecido macio e pegou o aparelho que vibrou na sua mão, e virando logo viu um ID desconhecido lhe ligando, mas ele não arriscou atender. Apesar de estar bem protegido sendo marido de um policial, ele não quer atender chamada desconhecida. Só pode ser um dos desgraçados querendo brincar comigo, pensou ele, irritado.
Depois de tudo lavado, ele foi no seu quarto e pegou uma bolsa de lado amarela com azul turquesa que ele ganhou no seu aniversário do cabideiro suspenso atrás da porta e olhou dentro para averiguar se o spray de pimenta ainda estar ali, e deixou a cabeça cair levemente para trás e suspirou aliviado. Gaspar não vai para lugar nenhum sem o seu spray de pimenta ou canivete, pois da última vez que saiu sentiu que ele estava sendo perseguido.
Colocou o dinheiro que juntou com o de Diogo para fazer o mercado, pôs numa abertura na lateral da bolsa e depois saiu arrastando a sua cesta de feira para fora do apartamento. A rua totalmente agitada do vai e vem do dia-a-dia de quem vai trabalhar, os carros e ônibus fazendo muito barulho junto das vozes das pessoas — nem todas — que passavam e comentavam algo em alto tom para a pessoa que está do lado.
Isso o fez sorrir por um momento, pois na comunidade a única coisa que ele ouvia era o som dos tiros ecoando pelas paredes, aterrorizando a população que enfrentava o fogo cruzado dos traficantes e da própria polícia; tem vezes que até a polícia já entra na comunidade atirando para todos os lados, e isso deixava os moradores assustados e revoltados. E Gaspar sabia que a sua família — o seu sangue — tinha uma parcela de culpa nisso, e ainda bem que ele aos poucos vai esquecendo-se de tudo o que acontecera no passado por mais doloroso que seja para si. Certamente a morte do seu pai foi a que ainda continua doendo, mesmo que ele tivesse sido responsável por todas as desgraças que aconteceram na sua vida, e mesmo assim ele se esquece um pouco dos tempos difíceis do relacionamento deles entrando no lugar o tempo onde ele era criança e seu pai só tinha atenção para ele, deixava tudo de lado apenas para cuidar do filho.
Até a sua adolescência chegar, o seu pai era o seu herói, mas quando o crime tomou conta da atenção dele já não era mais.
E ele sente os resquícios desse passado na rua. Ele parou de caminhar e olhou para os lados, pois ele sentiu as suas costas ardendo. Era como se estivesse sendo observado por alguém, e ele sabia que estava. Mas tratou isso como nada e apenas seguiu caminhando novamente por mais que a sensação ainda não tivesse acabado.
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O Príncipe Do Morro
RomansaGaspar Manhães é um simples garoto de dezessete anos que tem a sua vida de cabeça para baixo depois que se muda para o Morro do Alemão com seu pai, o sr. Pedro Manhães, chefe de uma boca de fumo há anos; e então, Gaspar terá que aceitar e respeitar...